16 dezembro 2010

A temática erótica de “Era te ver”



Por Raquel Martins

Erotismo
A origem de Eros advém da união entre Ares, deus da guerra e Afrodite, deusa da beleza e do amor. Afrodite, com inveja da beleza da jovem Psiquê, incumbe o filho de fazer com que a moça se apaixone pela mais desprezível criatura da terra e, por um acidente, Eros fere-se em suas próprias flechas e apaixona-se por Psiquê. Descoberto o envolvimento, Zeus, supremo do Olimpo, ordena que vivam separados e Psiquê passa a conviver com a dor da tristeza, à espera de Eros. Ou seja, a alma vive incompleta, infeliz enquanto não encontra o amor. Em O que é erotismo, Lucia Castello Branco diz que “o mito grego nos diz que Eros é o deus que aproxima, mescla, une, multiplica e varia as espécies vivas” (BRANCO, 2004, p. 8).

Platão explica a busca pelo amor, quando Aristófano relata que no começo todos os seres humanos eram de dupla sexualidade e, por castigo de Zeus, foram mutilados, separados e condenados a vagar pela terra, na ânsia se encontrar a metade perdida. A partir dessa visão mitológica da bipartição dos homens é que se explica a essência do erotismo para alguns escritores, como por exemplo, George Bataille. Em sua obra O erotismo (p. 15), o autor defende que este se articula em volta de movimentos contrários: a busca de continuidade dos seres humanos, a tentativa de permanência além de um momento fugaz, ao contrario do caráter mortal dos indivíduos, sua incapacidade de superar a morte. Para Bataille, os indivíduos se lançam nessa busca de permanência porque carregam consigo uma espécie de isolamento, acompanhada de certa nostalgia pela continuidade de sua metade perdida.

A ideia de erotismo como uma simples evidência de desejo sexual é banida por muitos autores que discutem o tema. Para eles o sexo constitui uma necessidade física, enquanto que o erotismo vai além desse conceito, consistindo nas manifestações de desejo como um todo, sendo de exclusividade humana. Talvez o que se pretende explicitar é que o erotismo não se limita aos mecanismos da genitalidade do sexo, ele vai muito além, superando essas barreiras, pois não se trata de uma simples atração da espécie e sim da possível “sede” dos corpos. É inerente ao ser humano desejar e essa característica faz com que todos os seres humanos sejam eróticos.

Pertencente a uma corrente de poetas-críticos contemporâneos, Affonso Romano de Sant’Anna aborda o erotismo em muitos de seus poemas, estes que são feitos com palavras populares, uma linguagem coloquial que proporciona maior integridade com o público, expressando tanto o lado humano do erótico quanto o lado poético.

 ERA TE VER

Era te ver, e meu pau se erguia
Como a cobra à magia do canto
Em tua boca,
E te seguia como a enguia
Busca a loca, como a águia busca o ninho
E a raposa encontra a toca

Meu pau se erguia, e se parecia ao cisne
No alvoroço do seu canto moço
Ou à andorinha que na boca da noite
De vertigem ficou louca

No poema “Era te ver” podemos perceber que o poeta compara o seu estado de prazer com elementos altamente poéticos. Para Paz “a relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal” (p. 12).

Ao mesmo tempo em que usa termos poéticos, o poeta usa termos “chulos”, como, no momento em que ele faz comparação de seu “pau”, no momento da ereção, com a cobra que se ergue à “magia do canto”; e a perseguição que este faz à amada, com a “enguia que busca a loca”; “como a águia que busca o ninho”, no momento em que ele está buscando o corpo da amada para realização do seu desejo e “como a raposa que encontra a toca”, para ilustrar o momento da penetração. Seu genital é igualmente comparado ao “cisne no seu canto moço ou à andorinha que na boca da noite de vertigem ficou louca” para representar o clímax desse desejo, o orgasmo. A repetição da expressão “meu pau se erguia”, reafirma o intenso desejo que o amante sente ao ter a visão do corpo desejado.

Affonso é considerado o poeta dos contrários, indeciso, irônico em relação à existência humana. Seus poemas contêm muito de metonímias e metáforas e não são organizados de acordo com regras pré-estabelecidas de ritmo, metro e estrofes. O poeta intercala discurso direto com linguagem figurada.

Em relação ao corpo, Paz (p. 182) diz que o encontro erótico começa com a visão do corpo que se torna uma presença, que por um instante contém todas as formas do mundo. E ao abraçarmos essa forma deixamos de vê-la e ela deixa de ser presença. O que vemos são apenas “olhos que nos miram, uma garganta iluminada pela luz de uma lâmpada, o brilho de um músculo, a sombra que desce do umbigo ao sexo. Cada um desses fragmentos refere-se a uma totalidade do corpo” (PAZ, 1994, p.182). O corpo da companheira deixa de ser uma forma e torna um lugar onde ele se perde e se recobre. Perde como pessoa e recobre como sensações.

Pode-se destacar que o sexo constitui uma necessidade física, enquanto que erotismo extrapola este conceito, consistindo em manifestação de desejo e ânsia louca de corpos se embriagando no prazer, em um desespero na busca de realizações, com a finalidade de “atingir o intimo do ser aonde o coração nos falta” (BATAILLE, 1987).

Referências:
BATAILLE, George. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.
CASTELLO Branco, Lucia. O que é erotismo.  São Paulo: Brasiliense, 2004.  (Coleção Primeiros Passos, 136).
DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e literatura. São Paulo: Ática, 1985.
PAZ, Octavio. A dupla chama. Tradução: Waldir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1994.
SANT’ANNA, Affonso Romano, 1937. Poesia reunida: 1965-1999. Porto Alegre: L&PM, 2004. 2 v; 18 cm (L&PM Pocket).
http://ibict.metodista.br/tedeSimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1067     

O erotismo no conto “O Internato”



Por Flaviane Tereza e Marília Nunes

Baseando-nos nas orientações teóricas de Octávio Paz (1994), em A dupla chama: amor e erotismo, e Michel Foucault (2004), em “Nós, vitorianos”, faremos uma breve análise sobre o tema do Erotismo, e em seguida, analisaremos o conto “O Internato” da autora Anaïs Nin (2005), observando seus aspectos eróticos.
Segundo Octávio Paz (1994), o erotismo que verdadeiramente funciona e que faz perdurar a atração recíproca por longo tempo está no olhar apaixonado e na admiração pelas qualidades que se consegue enxergar na pessoa amada. O erotismo está mais no sugerir do que no mostrar totalmente, no claro-escuro, no mistério a ser desvendado, na repetição do ato do amor como se fosse sempre a primeira vez. 

O sentimento é uma exceção dentro dessa grande exceção que é o erotismo diante da sexualidade, mas é uma exceção que aparece, porém, em todas as sociedades e épocas. Não há amor sem erotismo como não há erotismo sem sexualidade, o amor por sua vez também é cerimônia e representação, mas é alguma coisa mais: uma purificação que transforma o sujeito e o objeto do encontro erótico em pessoas únicas. O amor é a metáfora final da sexualidade, a sexualidade é animal, o erotismo é humano. Ainda segundo o autor, o encontro erótico começa com a visão do corpo desejado, vestido ou desnudo o corpo é uma presença, uma forma que, por um instante são todas as formas do mundo.

Essa questão do erotismo pela visão do corpo desejado é presente no conto “O Internato” que está no livro Delta de Vênus: histórias eróticas, da Anaïs Nin (2005) e conta uma história que aconteceu em um internato para meninos, dirigido por padres jesuítas. Entre esses padres, havia um que era meio indígena e que se excitava com frequência ao observar os meninos, em especial, um lourinho com pele de garota. No confessionário, esse padre fazia perguntas tão obscenas como: “já se acariciou?”, “tem ereção?”, “já olhou outro menino nu?”, que logo os meninos aprendiam sobre “sexo”. Esse fato exemplifica bem o que diz Foucault (2004) sobre o papel da confissão para a construção de um saber sobre o sexo. Segundo o autor, a confissão foi e ainda é a matriz geral que rege a produção do discurso verdadeiro sobre o sexo, discurso este, em que se reconstitui o que foi feito pela confidência dos prazeres individuais. Atiçados por tais perguntas, os meninos começaram a sentir desejos sexuais e durante uma excursão, alguns deles se perderam e entre eles estava o lourinho, que depois de algum tempo foi jogado no chão e abusado sexualmente pelos outros garotos.

O conto apresenta várias cenas eróticas, como por exemplo, o momento em que o padre ficava observando o corpo nu de um dos meninos e também quando ele se excitava perante o lourinho. E assim percebemos que o texto contém passagens explícitas e implícitas, que remetem à noção de desejo e sexualidade reprimida, visto que o ambiente é um internato e, portanto, eles não tem convivência com mulheres. A história é permeada por um cunho religioso, um lugar opressor e cheio de regras, onde o corpo é visto como algo do qual os meninos deveriam se envergonhar, porém, com o tempo, o que eles aprendiam era a ter sonhos e pensamentos eróticos: “E sonhava que fazia amor com vicunhas, e acordava todo molhado manhã após manhã.

Segundo Octávio Paz (1994), a chamada literatura erótica que se propõe a estudar o prazer, o corpo e suas expressões, ainda é vista como algo desnecessário, que deve permanecer velado. O papel da literatura erótica é muito mais do que simplesmente excitar o leitor. Ela cumpre a função de fazer pensar sobre questões diversas do comportamento humano no nível emocional, social e cultural. No conto em questão, a linguagem erótica emite sentidos e idéias que nos remetem aos verdadeiros sentimentos e necessidades daquele padre e principalmente daqueles meninos que, ao abusarem do lourinho, experimentaram a sensação do prazer e da satisfação sexual.




Referências:
 NIN, Anaïs. O Internato. In: ______. Delta de Vênus: histórias eróticas. Porto Alegre: LP&M, 2005.
PAZ, Octávio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.
______. Sexualidade e poder. In: ______. Ética, Sexualidade e Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. (Ditos e Escritos V). 

Expressão periférica da sexualidade em "Resinas para Aurélia"


Por Lana Alves

Em Terra de Palavras (2008), estão reunidos contos de diversos autores com temas como o negro, a mulher, a criança de rua, a morte, o doente, aquele que está para morrer, o solitário e no conto “Resinas para Aurélia”, de Mayra Santos-Febres, escritora porto-riquenha, algo de ordem sensual também aparece, do que, em uma entrevista ela mesma fala sobre:
A sensualidade é a maneira mais direta de se conectar com o mundo. Sem os sentidos não vemos, não cheiramos, não tocamos, não ouvimos, nem gostamos do mundo. O resto é derivado. O pensamento é a trilha dos sentidos e às vezes sua armadilha. Por querer escapar da armadilha, volto à sensualidade. Talvez assim possamos repensar o mundo de uma maneira mais íntegra. Embora, tampouco seja ingênua. Sei que o corpo é um espelho oblíquo e que os sentidos tampouco são o lugar da pureza, nem do acesso direto a verdade. Mas eu nunca aspirei à pureza e muito menos a verdade.  Na verdade, rejeito. Não creio que sirvam para muito, nem a do corpo, nem a da escrita, nem a da razão. A pureza e a verdade são assépticas. E o asséptico não é bom caldo de cultivo.
O conto inicia com uma letra de uma cantiga porto-riquenha e logo nos apresenta Lucas, personagem principal do conto, que parava seu ofício para ver passar as “putas” da Patagônia com suas tornozeleiras que lhes identificava o oficio. Lucas morava com sua avó Nana e seu afeto por ela era muito grande, com ela aprendera tudo sobre seu trabalho.

Nana pedia a Lucas que fosse ao Conde Rojo, prostíbulo próximo, “para buscar merda de putas jovens misturada com sangue menstrual” crendo ser um bom fertilizante. Dessa forma, Lucas se acostumara às “putas” desde pequeno, frequentemente se deitava com elas que o faziam entrar e se trocavam se arrumavam em sua frente, essa conduta que paira ao “aliciamento” por parte das prostitutas, foi vista como ameaçadora à moral da sociedade e como pode ser percebido a partir da leitura de Do cabaré ao lar (1985) na França, um regimento previa que as casas de tolerância (e o que ali se praticava) deveriam ser registradas na polícia, as meretrizes possuíssem uma carteira sanitária de identificação e passassem por exames médicos obrigatórios; dessa forma, tenta-se dominar “o mau necessário”, colocando-o facilmente sob controle, tudo isso pautado em um discurso médico-social de prevenção do bem público.

É destacado, no conto, que ninguém além das putas encarava Lucas, ninguém se dava conta de suas feições, mas as boas senhoras, por vezes encantadas pela habilidade de Lucas e com seus dedos firmes, imaginavam que eles lhes fossem capazes de tirar-lhes de dentro toda secura e fazer-lhes desmanchar em rios de âmbar suculento, coisas das quais elas se protegiam para assegurar sua respeitabilidade.

Também em Do cabaré ao lar (1985) é delineado o padrão de mulher que por muito tempo se estendeu e ainda lança raízes em nossa sociedade que prega uma sexualidade um tanto livre. No livro tem-se uma descrição de uma esposa-dona-de-casa-mãe-de-família, que não deve nem sentir prazer, ou seja, deve manter sua castidade mesmo casada, pois o orgasmo de uma mãe é vergonhoso, e suas obrigações como mãe são pautadas em um discurso da natureza de ser mãe. A mulher que não segue esse padrão se insere no campo sombrio da anormalidade do pecado e do crime, ou ainda da prostituição. A esposa privada de seu prazer tem um cônjuge que, biologicamente possui maior desejo sexual e dessa forma, “respeita” sua esposa, mas deve reafirmar cotidianamente sua sexualidade, e dessa forma, procura a prostituta. A questão do controle da expressão da sexualidade pode também ser vista em Foucalt (1988) que se refere à dinâmica do poder como controle das sexualidades, ditando onde e quando o sexo é permitido e insere também a necessidade da confissão como um de seus mecanismos. Esse poder toma posse de discursos diversos, dentre os quais o médico-biológico e o religioso, para, de acordo com a cultura e a susceptibilidade de crença das pessoas, controlar suas expressões. 

Uma enchente inundou a cidade e a avó de Lucas morrera, Lucas tinha ido ao Conde Rojo e lá conheceu Aurélia, com quem passou a noite e por quem se apaixonou. Ele compara a cor da moça à substância amarela, mel, que acabara de destilar do coração das árvores e nisso pode-se perceber uma característica que se confunde com o fetichismo. No entanto, apesar de a todo o momento comparar a mulher e a relação com os objetos com os quais mantém grande contato, a constituição perversa não está aí, seu dismorfismo se coloca mais em face de uma desorganização atual, de ordem afetiva, que possivelmente possuía uma predisposição estrutural, visto que Lucas não possui uma vida afetiva satisfatória, e seus relacionamentos sociais eram precários, limitando-se à sua avó e as meretizes.

Quatro dias depois, foi buscar a mulher amarela no que sobrou do prostíbulo. Não encontrou. Lucas fora chamado para resgatar cadáveres que ninguém quis recolher por medo de contaminação, os cadáveres de “putas”. Imaginava como ninguém as ia buscar e como as jogariam no depósito, cremadas, sem uma única carícia de despedida, aqueles corpos que o povo inteiro tinha manuseado e dos quais agora queriam se desinteressar.

Um dia, Lucas caminhava pelas margens do rio e de repente viu algo do outro lado da água, tirou a camisa e se jogou no rio, depois de algum tempo percebeu ser Aurélia. Levou-a para casa e começou a despi-la, lavou seu cabelo com sabão e perfumou com água de rosas. Foi até a oficina e pegou a mesma solução que houvera usado com Nana, tinha mais que o suficiente para cobrir aquele corpo de passarinho.

Relaxou-lhes os músculos, até que sentiu que a fricção e outras coisas lhe devolveram calor à pele, sentia certo calor que vinha de dentro da carne da moça. Em determinado momento, Lucas não pode mais, despiu-se colocou um pouco de resina na pélvis, no púbis e em seu membro, com os dedos destravou a vulva de sua amada e ali mesmo, foi penetrando na doce Aurélia de âmbar e resinas.
Gozou dentro dela contraindo todos os músculos das costas, se esvaiu como um saco de leite entre as pernas, lhe gritou ao ouvido que a amava, que a queria para sempre, adormeceu sobre o cadáver e sonhou que a mulherzinha amarela o rodeava com seus braços e lhe dava beijinhos de amor.
Ao despertar foi ao povoado e voltou com dois grandes blocos de gelo, um facão e potes de latão, dos que usava para recolher resina, pediu dispensa do serviço de resgatar “putas” afogadas, ia com menos frequência aos prostíbulos e três vezes por semana se trancava na oficina com uma lata cheia de unguentos e uma garrafa de água de flores e não saía até de madrugada, sorridente e cheio de suores pegajosos em toda a pele.

Bem (2005) afirma que a experiência popular é reorganizada por discursos dentre esses o popular e o nacional e acrescenta um terceiro que gira em torno do corpo, saúde e sexo. Fala de uma identidade física que baseada nos dois outros discursos organiza os discursos sobre o corpo, que estão grandemente relacionados ao racismo e consequentemente à discriminação. É através do discurso público que se mantém a segregação, seja por base em condutas que são ditas imorais ou até antinaturais, seja por diferenças físicas, econômicas, religiosas. Os olhares das pessoas se fixavam nas mãos de Lucas, assim como só focavam nas tornozeleiras das “putas”. Essa simbolização da identificação das classes periféricas da sociedade é muito interessante, pois tanto com Lucas quanto com as “putas”, algo os identifica e os separa do “normal”, algo os coloca em “seus lugares”, para que não se misturem e ameacem o padrão. E esse “algo” é sustentado pelo discurso popular que excluirá esses corpos servis.

Nesse conto, tem-se a representação da união de segmentos periféricos da sociedade baseados nesses discursos da experiência popular, Lucas não era sequer encarado, era um simples jardineiro que se prestava a serviços periféricos que ninguém faria, aí também se detêm a colocação das prostitutas, que em seus prostíbulos foram reconhecidas como necessárias, mas que no cotidiano, são negadas e recriminadas. Essa união se dá com a colocação de Lucas à margem da sociedade, não aceito por ela e assim sem relacionamentos amorosos com constituintes aceitos dessa sociedade, relacionando-se com prostitutas, outra subclasse. Lucas cresce tendo contato com as “putas” e as fezes delas, coisas que a sociedade recrimina, logo, se insere nesse lugar de recriminado, e o que faz não deve ser bem visto por ela, seu ofício e as suas demais condutas, incluindo sua sexualidade.

Em certo ponto, pode-se pensar em uma sexualidade perversa em Lucas, mas isso não pode ser afirmado ao levar em conta que antes da morte de Aurélia, seu objeto de desejo era “normal”, tendo desejo por mulheres fora da “necrofilia”. Talvez ele agora tenha se fixado a um objeto além da morte, isso seria perversão no sentido de desrespeito à moral instituída, visto que a necrofilia, que ele adota, é crime, assim sendo, ele acaba de assumir uma conduta perversa de sexualidade, mas que não é uma sexualidade perversa em sua constituição.


Referências: 
BEM, Arim Soares do. A dialética do turismo sexual. São Paulo: Papirus, 2005. (Coleção Turismo).
FELISBERTO, Fernanda. Terra de palavras: contos. Rio de Janeiro: Pallas: Afirma, 2008.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.
MORGADO, Marcia. Literatura para curar el asma. Entrevista com Mayra Santos-Febres. Disponível em: http://barcelonareview.com/17/s_ent_msf.htm
RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930/ Luzia Margareth Rago. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 198
5. 

Erotismo e pornografia no poema “CXII – O Britador”, de Paulo Veloso

Por Clayre Cardoso e Poliana Pires


A puta apavorada a bunda empina
E a boceta arreganha o mais que pode,
Pra ver se dá calado à longarina
Que a custo empunha esse alentado bode.

O caralho é mais grosso do que as coxas
Da pobre puta, que protesta em vão...
As berbas da quirica já estão roxas,
Das marradas que leva em profusão.

Mas volta o jumental garanho à luta!
O pau trabalha como um bate-estaca!
 _ Quer rasgar, meio a meio, a pobre puta!

E mete!!! Mas a arremetida louca
Não termina no útero da vaca!
_ Une o cu co’ a boceta e sai na boca!!!
                                                                                                                                          O Britador, Paulo Veloso


No âmbito do erotismo e da pornografia é difícil verificar um limite exato entre eles. Em algumas discussões feitas por estudiosos, percebe-se que eles admitem que o pornográfico apresenta-se pela exposição explícita dos atos sexuais ou de partes do corpo, tendo como foco as partes genitais, e o erótico retrata o ato sexual com mais cuidado, ou seja, com mais sutileza. Segundo Alexandrian (1993, p. 8) “a pornografia é a descrição pura e simples dos prazeres carnais; o erotismo é essa mesma descrição revalorizada em função de uma idéia do amor ou da vida social.”

No poema “O Britador”, podemos perceber com clareza a maneira pornográfica que o autor trabalha, apresentando o sexo de uma forma explícita e grotesca, com uso de uma linguagem obscena na qual é manifestada nos "palavrões", descrevendo em seu poema uma prostituta tendo uma relação sexual com um homem, na qual um corpo invade o outro, tornando a carne mais desejável. O poema em sua primeira estrofe apresenta de início uma “puta” com sua bunda empinada para iniciar o ato sexual que ocorre durante o texto, a partir daí percebemos a maneira excitante que o autor trabalha em seu poema.

No poema, o homem e a mulher demonstram seus desejos e se entregam ao sexo sem pudor e culpa, agem de modo natural e buscam somente o prazer. Não há obstáculo moral, hesitação, remorso, senso de proibição ou sentimento romântico, para eles somente o prazer é procurado, podemos perceber esse desejo no poema todo, mais principalmente na ultima estrofe quando ele diz: “– une o cu co’a boceta e sai na boca!!!”

Concluímos então, que o autor Paulo Veloso em seu poema trata com bastante clareza a pornografia, pois ele descreve cada detalhe da relação sexual, criando cenas em primeiro plano e uma linguagem fortemente erotizada com a intenção de excitar o leitor.

Referências:
ALEXANDRIAN. Historia da literatura erótica. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
BUENO, Alexei (org.). Antologia Pornográfica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
PAES, José Paulo. Amor na literatura. Ed. Schwarcz, 1996.

O envelhecimento feminino em “Mas vai chover”


Por Beatriz Dantas e Elisângela Borges

Clarice Lispector, indiscutivelmete, foi uma grande escritora, suas principais obras foram romances, crônicas e vários contos. Dentre seus contos mais famosos estão os quatorze que compõem A via crucis do corpo, que foram publicados em 1974, considerado pela crítica como “obra menor” da autora. E para se defender dos ataques, ela disse que as histórias foram feitas sob encomenda e que, contrariando sua vontade inicial, aceitou a tarefa por puro impulso.

O conto “Mas vai chover”, descreve a Sra. Maria Angélica de Andrade, de 70 anos, mulher rica, que se sente sozinha, sexualmente excitada e para escândalo da sociedade em que vive, resolve tomar por amante Alexandre, um jovem de 19 anos, o qual trabalha numa farmácia e faz entregas a domicílio: “E deparou-se com um jovem forte, alto, de grande beleza” (p. 75) e “Ele era a força, a juventude, o sexo há muito tempo abandonado” (p. 75). Ela seduz Alexandre com o seu dinheiro: “Venha para a cama comigo...” e “Eu lhe dou um presente grande! Eu lhe dou um carro”. O jovem se presta a esse papel visivelmente interessado no dinheiro de Maria Angélica, a qual passa a ser vítima da exploração financeira e emocional do rapaz.

A velhice, em nossa sociedade, tem sido tratada com grande preconceito, pois somente o belo e a imagem exterior são valorizados, características que na maioria das vezes são associadas à juventude. O assunto do envelhecimento do corpo, principalmente o envelhecimento do corpo feminino e sua sexualidade, são temas pouco discutidos, vistos como inexistentes ou inadequados na maioria das vezes, devido ao preconceito existente.

A mulher velha é tida como alguém que não mais sente desejo e, se sente, não é vista como alguém digna de tê-lo satisfeito. Nossa sociedade é centrada na beleza do que é jovem, principalmente no que diz respeito à mulher. Há um forte estigma que desvaloriza a mulher mais velha. Normalmente, a vida sexual de uma mulher mais velha é alvo de chacotas, comentários, especialmente quando se trata de um relacionamento com homem mais jovem (LIMA, p. 01).
           
Conforme Barbosa, as pessoas de idade têm os seus desejos bloqueados quando deixam de exercer suas funções sociais, o que consequentemente provoca uma degradação precoce. Foi a partir do processo de industrialização no século XIX, onde as cidades se urbanizam com uma população predominante de operários, que os velhos se tornam inúteis para uma sociedade industrializada, do ponto de vista do trabalho e do sexo.  Com as sociedades altamente industrializadas, no decorrer do século XX, a velhice é cada vez mais rejeitada.

De um modo geral, as variadas representações da senescência são determinadas pelas classes sociais. Nas camadas pobres, muitos velhos, ao perderem a capacidade produtiva, tornam-se um fardo para a família e são abandonados em asilos; os que perambulam, “caducos”, pelas ruas são objetos de mofa da criançada. Já nas famílias de classe media, perpetuando a figura romântico-burguesa do avô bonachão, o ancião se torna mero cúmplice dos netos, um divertido companheiro de brincadeiras, sem poder para decidir sobre seu destino e o dos familiares. Nos estratos ricos da sociedade entretanto, o velho que possui bens é, muitas vezes, venerado por interesse, e continua a exercer, de certa forma, seu poder e sexualidade, embora estes sejam veladamente ironizados pela família e pela sociedade (BARBOSA, 2003, p. 88).

O desejo de Maria Angélica pelo jovem Alexandre cresce gradativamente ao longo do conto, ele se aproveita disso e a explora cada vez mais, até que chega a lhe pedir um milhão de cruzeiros. Como ela não tem como dar essa quantia ao rapaz, ele então resolve abandoná-la: “Sua velha desgraçada! Sua porca, sua vagabunda! Sem um bilhão não me presto mais para as suas sem-vergonhices!” (p. 78). As consequências desse relacionamento são desastrosas para ambos, Alexandre, nunca mais pode ser o mesmo, aos vinte e sete anos ficou impotente, e Maria Angélica se sentiu rejeitada e explorada pelo rapaz.

Referências:
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
PIRES, Maria Isabel Edom. Formas e dilemas da representação da mulher na literatura contemporânea. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
BARBOSA, Maria José Somelarte. Passo e compasso: nos ritmos do envelhecer. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
LIMA, Susana Moreira de. A obscenidade da velhice feminina: o rompimento do olhar na literatura. Disponível em: http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/S/Susana_Moreira_de_Lima_13_A.pdf

A mulher contemporânea em busca do prazer


Por Kívia Alves e Júlia Graciele

Que tal falar sobre sexo, amor, solidão e morte? É o que encontramos no conto de Caio Fernando Abreu, Dama da noite.

O conto Dama da noite narra basicamente a história de uma mulher com seus 35 a 40 anos que “deseja fazer parte da roda”, que, para ela é tudo aquilo que gira em torno de si, naquela determinada noite era a vida de alguns jovens que se encontravam em um bar qualquer da cidade.

A personagem principal tem uma conversa descontraída com um garotão, faz piadas com este e sente-se confiante em poder pagar pelo prazer do sexo. Em alguns momentos do conto ela chega até a questionar a masculinidade dele.

A mulher, num primeiro instante, parece meio perdida, e dá a entender que esta afim de sexo casual, mas no decorrer da narrativa ela mesmo confessa que esta a espera de um grande amor, ela mesmo diz, “Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio desse lixo todo procuro o verdadeiro amor”.  Ela sabe que esse amor em algum momento vai acontecer, por isso sai todas as noites a sua procura, e quando começa a amanhecer retorna para sua casa, pois à luz do dia as damas da noite recolhem seu perfume.

O simbolismo que Caio Fernando Abreu apresenta entre a planta denominada dama da noite com a personagem de seu conto, representa o desabrochamento da personagem à noite, pois a planta dama da noite durante o dia é sem graça, mas ao anoitecer desabrocha e exala seu perfume inconfundível.

As mulheres contemporâneas não esperam mais por um príncipe encantado”, para satisfazer seus desejos e expectativas, se os homens não as procuram elas vão ao seu encontro, mesmo que seja por sexo casual. As autoras contemporâneas vem tentando desconstruir conceitos ideologicamente criados sobre a mulher. Como a autora Cristina Bailey confirma no trecho:
as escritoras brasileiras vêm desconstruindo mitos culturais que enquadram a mulher em padrões rígidos de feminilidade, beleza e juventude, e modelo de comportamento social permitindo à mulher e dela esperado, padrões e modelos esses que afetam profundamente o sentido de identidade do sujeito feminino e sua relação com o se corpo, sua sexualidade e seu desejo (BAILEY, 2005).  
A mulher fala ainda da morte para o garoto de uma forma triste, tentando mostrar que esta é a descontinuidade de tudo, da solidão a qual é descrita por ela como se fosse um caminho triste e sem volta. Aspectos estes citados no texto de Angélica Soares (1999), para quem:
O erotismo, enquanto experiência interior do ser humano, experiência de limites entre a exuberância da vida e presença da morte, em seus movimentos de superação das diferenças e do retorno à existência faltante, reconciliará sempre o arrebatamento e o abandono.
Ao procurar alguém para satisfazer seus desejos, a personagem dama da noite procura diminuir sua solidão, pois no encontro de dois corpos não se tem solidão, ao contrário, temos o preenchimento do vazio.

Referências:
ABREU, C. Fernando. Site: www.scribd.com/doc/.../ Acesso em: 19 nov. 2010.
BATAILLE, Georges. O erotismo. São Palo: Arx, 2004.
BAILEY, Cristina Ferreira-Pinto. O corpo e a voz da mulher brasileira na sua literatura: o discurso erótico de Márcia Denser. Disponível em: http://www.cronopios.com.br /site/ensaios.asp?id=128. Acesso em: 10 de nov 2010.
SOARES, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas na liberação do erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro: Difel, 1999.

O corpo e seus desejos extravagantes



Por Fernanda Peixoto

Amparada pelo dom magnífico de inusitar o habitual, Clarice Lispector, através de seus escritos, proporciona uma literatura transcendente, misteriosa, inconstante, obrigando seu leitor a ler e reler diversas vezes um mesmo texto, dispondo-se a mergulhar nas entrelinhas, no vão das histórias que ela nebulosamente constrói.  Suas tramas retratam o cotidiano, as passagens habituais de pessoas comuns, porém o mistério está na forma como estas rotinas são descritas.

Como salienta Clenir Bellezi de Oliveira, “seus personagens, gente comum, às voltas com o dia-a-dia magro, sofrem a fissura de um imprevisto qualquer que os transtorna, crispando-os, desequilibrando-os. O que move esse desequilíbrio é a súbita revelação de algo fundamental que permanecia, até então, adormecido” (Oliveira, 2007, p. 36). O recurso do diferente, do inusitado, não está na linguagem, que por sinal se apresenta simples e conhecida, nem em fatos incomuns, mas sim no espaço abstrato de uma palavra para outra, de uma frase, de um parágrafo; naquilo que não está dito, mas sugerido; no interior mais distante e escondido, às vezes escondido de si próprio; nas entranhas  do não pensado, do não imaginado, do banido. 

Desbravadora do interior, um tema que não poderia deixar de ser um sucesso em meio às suas mais variadas produções seria o corpo humano, palco de tantos mistérios e questionamentos. No conto “O corpo”, por exemplo, sentimentos e sensações como desejo, virilidade, erotismo, arrependimento e satisfação, infração ao lícito, às poderosas regras sociais, temas estes tão abordados por Clarice, tornam a história intrigante e como de costume, inusitada.

A história gira em torno de um homem forte e rude que possui uma relação bígama com duas mulheres, além de uma terceira prostituta. O protagonista mostra-se fascinado pelos desejos mais ardentes do corpo, tornando-se um fanático por sexo. O erotismo é o cerne desta relação múltipla. Os desejos mais impulsivos controlam o dia-a-dia e as ações dos personagens. Xavier, o protagonista, se não tem seus desejos fomentados pelas duas esposas, procura a prostituta, que seria no caso a terceira; e se as duas esposas não o têm para também atenderem-nas, consolam-se entre si, excitando e fazendo amor, “amor triste”, pois não são homossexuais.

O desfecho trágico e ao mesmo tempo passional da história é resultado das inconstâncias psicológicas dos personagens, que se envolvem em traições e desejos de vingança, qualidades típicas das criaturas de Clarice, que, como destaca Clenir, “vivem em estado crítico de sensibilidade e de urgência. Sentimentos de solidão, de abandono, de culpa, de júbilo e, sobretudo, de auto-enfrentamento promovem uma ruptura com a imaginação que traziam de si e da realidade circundante, revelando a precariedade de sua condição, as carências e, muitas vezes, o que existe para além da falsa estabilidade do cotidiano”(Oliveira, 2007, p.36).

O homem de nome Xavier é morto com vários golpes de facão pelas duas mulheres que viviam com ele após ter seu caso com a prostituta descoberto. A morte do companheiro representa para as duas mulheres a realização do desejo de vingança. Como não puderam tê-lo apenas para elas, resolveram matá-lo, ficando assim elas e a amante sem ele. No entanto, segundo Bataille, “a paixão é designada por um halo de morte”. (Bataille, 2004, p. 34). Conforme sua tese, a morte permitiria a continuidade de dois seres descontínuos; seria a solução, a forma encontrada pelo amante de manter a pessoa amada em sua posse. Seríamos seres descontínuos, ou seja, indivíduos que não possuem continuidade, que se vêem limitados pelo tempo, mas que quando mergulham em uma paixão, são invadidos por um desejo insano de continuidade, de infinidade, além de um sentimento de posse, de egoísmo, e seriam justamente estes desejos que nos moveriam, que nos conduziriam aos atos mais imprevisíveis, atos como o delas, de matarem em uma noite estrelada e ao som do piano de Schubert, o grande amor.

A ironia do desfecho é o descaso do policial após descobrir o corpo. Para se livrarem do assassinado, enterram-no no jardim e plantam por cima da cova uma grande e bela roseira, que mais tarde é destruída brutalmente pelos policiais, convocados ao local pelas suspeitas do secretário de Xavier. Ao invés de prender as duas criminosas, o policial lhes sugere uma viagem a Montevidéu, para que elas não lhe dêem mais amolação, e isso, para evitar o “barulho” que um crime como aquele poderia causar.

Assim, neste conto, o corpo seria ao mesmo tempo objeto de salvação e perdição. Salvação quando instrumento de consumação de prazeres; e perdição quando causa da própria morte.
           
Referências:
BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad. Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco,1998.
OLIVEIRA, Clenir Bellezi de. Revista Discutindo Literatura. Clarice Lispector: um olhar sobre a obra de uma das divas das letras brasileiras. Ano 3, N° 14. São Paulo: Escala Educacional.

A sedução em "Castor e Pólux, sequer pressentidos", de Marina Colasanti


Leda e o Cisne, de Paul Prosper Tillier, 1860

Por Gisele Assunção

O conto “Castor e Pólux, sequer pressentidos” é da escritora brasileira Marina Colasanti. É um conto surpreendente que se desdobra sobre a temática do amor e, em especial da sedução. Trata-se de uma história criativa visto que se intertextualiza a um episódio da mitologia grega: o mito de Leda e o cisne.

Conta o mito que, no dia de seu casamento, Leda foi banhar-se no lago. Nesse instante, Júpiter a vê, apaixona-se por ela e, transformando-se num belo Cisne, ele se aproxima e a seduz. Dessa união nascem Castor e Pólux, filhos de um mesmo óvulo, embora Pólux fosse divino e Castor fosse mortal.

O conto “Castor e Pólux, sequer pressentidos” faz referência a esse mito. Nele, a personagem recebe a visita de um cisne, que no meio da noite entra pela janela do quarto, que no conto configura o espaço recôndito da intimidade, e a seduz. “O pescoço, esse sim, seduzia”. (COLASANTI, 1986, p. 69). Esse elemento, como parte física bastante evidenciada no conto, na verdade, faz uma associação ao órgão sexual masculino responsável pela reprodução, vez que apresenta características comuns a esse órgão como a forma e a rigidez. “Longo, flexível, voluptuosamente sinuoso, de um branco tão igual e brilhante, mais parecia um jorro de leite desenhando arabescos na escuridão.” (COLASANTI, 1986, p. 69).

A respeito da sedução, Baudrillard (1991) afirma que:
Não existe tempo da sedução nem tempo para a sedução, mas ela tem o seu ritmo sem o qual não aconteceria. Ela não se distribui como o faz uma estratégia instrumental, que caminha através de fases intermediárias. Opera num instante, num único movimento e sempre tem seu fim em si mesma (p. 92).
No conto de Colasanti, a sedução, bem como o ato sexual acontece apenas em uma noite. “Mas o cisne não veio naquela noite, nem na seguinte, nem na outra ainda. E ela estava quase começando a crer que tudo não passara de uma alucinação...” (COLASANTI, 1986, p. 70).

Esse conto de Colasanti transcende a realidade concreta, uma vez que do ponto de vista da verossimilhança uma mulher ter uma relação sexual com um cisne e como consequência desse ato, ela gerar um ovo em lugar de um feto, em hipótese alguma, poderiam ser associados à verdade. É um conto que recupera a narrativa mítica que marca o encontro entre Júpiter e Lêda.

Em “Castor e Pólux, sequer pressentidos há uma centralização na personagem do cisne que é o sedutor e representa simbolicamente a fertilidade. A figura da mulher só ganha destaque depois que esse vai embora, fazendo a promessa que voltaria nas noites seguintes. A não promessa por parte do cisne traz à mulher certo desconforto que se acentua logo ao fim da narrativa quando ela percebe que foi vítima da sedução lançada pelo cisne e ainda fica desconsolada pelo fato de ele não ter feito um filho de verdade, vez que ela havia gerado um ovo. “Duas vezes a enganara o palmípede. Nem mais viera vê-la. Nem lhe fizera um filho de verdade” (COLASANTI, 1986, p. 70).

Marina Colasanti em “Castor e Pólux, sequer pressentidos”, explora de forma muito aproximada o mito original “Leda e o cisne”. A mulher fecundada pelo cisne que adentrou por sua janela dá luz a um enorme ovo. Tomada de ódio e repugnância pede aos criados que levem o ovo espúrio e o destrua. Os elementos do mito original vêm reconstituídos no conto de Colasanti, mas neste a mulher gera um ovo e na história mitológica, Leda dá a luz a dois filhos gêmeos. Essa aproximação confere um caráter dialógico e intertextual entre o conto e a mitologia.

Marina Colasanti soube, por excelência, produzir um conto contemporâneo com raízes na mitologia grega. A leitura desse conto é enriquecedora vez que traz em uma única “bagagem” marcas da contemporaneidade e traços mitológicos bastante definidos.

Referências:
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1990, v. 1.
BAUDRILLARD, Jean. Da sedução. Tradução Tânia Pellegrini. Campinas, SP: Papirus, 1991.
BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Tradução Luciano Alves Maira. São Paulo: Martin Claret, 2006.
COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Roco, 1986.

Mas vai chover: o desejo sexual feminino na velhice



Por Patrícia Mendes

A história contada nesse conto é a de Maria Angélica de Andrade, uma senhora de 60 anos rica e viúva que se apaixona por um jovem de 19 anos. Alexandre era entregador de produtos farmacêuticos, jovem forte, alto e de grande beleza. Ela compra o rapaz em troca de sexo e o transforma em seu amante. Nesse conto, percebemos a inversão dos papéis do homem e da mulher, discordando da visão tradicional sexual de que o papel ativo seja do homem e o passivo da mulher, onde o homem é que toma a iniciativa:

– Só deixo você sair se prometer que voltará! Hoje mesmo! Porque vou pedir uma vitaminazinha na farmácia...
Uma hora depois ele estava de volta com as vitaminas. Ela havia mudado de roupa, estava com um quimono de renda transparente. Via-se a marca de suas calcinhas. Mandou-o entrar. Disse-lhe que era viúva. Era o modo de lhe avisar que era livre. Mas o rapaz não entendia. [...] Levou-o a seu quarto. Não sabia como fazer para que ele entendesse.
Disse-lhe então:
– Deixe eu lhe dar um beijinho!
O rapaz se espantou, estendeu-lhe o rosto. Mas ela alcançou bem depressa a boca e quase o devorou (1998, p. 86).
A protagonista age de acordo com o que sente, é movida pelo desejo, preocupa-se apenas em satisfazer seu corpo, é ousada, não se importando com que os outros pensem dela, enfrenta o medo e a vergonha, está apaixonada e acredita que é correspondida pelo Alexandre.

Nesse conto, Clarice Lispector expõe o drama íntimo da mulher na velhice, a sua sexualidade e seus desejos, que são encarados pela maioria das pessoas como inexistentes. Ao nos depararmos com uma senhora em pleno vigor sexual isso nos causa estranheza, pois estamos acostumados a associar o belo, o erótico com a juventude. É interessante lembrar também que esse conto foi escrito na década de 70 quando a repressão e o preconceito da sociedade eram maiores em relação a um romance entre uma mulher mais velha e um jovem mesmo que por dinheiro.

Bataille, em seu livro O erotismo (2004), nos fala que os seres humanos fizeram da atividade sexual uma atividade erótica. Entendemos que as pessoas mantêm relações sexuais e amorosas umas com as outras, e a atividade sexual é um dos pontos principais para a existência, sendo o desejo uma experiência subjetiva e que não acaba na velhice.

O conto termina com uma Maria Angélica apática dizendo: “Parece – pensou – parece que vai chover”, ao colocar um ponto final nas extorsões do amante.

Referências:
BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
BAILEY, Cristina Ferreira-Pinto. O corpo e a voz da mulher brasileira na sua literatura: o discurso erótico de Márcia Denser. Disponível em: http://www.cronopios.com.br /site/ensaios.asp?id=128. Acesso em: 05 dez 2010.

11 dezembro 2010

Os impasses do desejo feminino no conto “O leopardo é um animal delicado”


A partir da década de 70, com o movimento feminista, há uma maior participação do universo feminino na literatura, espaço pelo qual a mulher passa a expressar seus desejos, prazeres e sua identidade, quebrando assim o silêncio que a muito tempo lhe era imposto. Bailey (2005) relata que as escritoras brasileiras desde então tentaram desconstruir a imagem idealizada da mulher, como ser frágil e que tem seus desejos contidos, revertendo alguns dos padrões de comportamento típicos da identidade feminina. Dentre os principais nomes se destacam Lispector, Raquel de Queiros, Gilka Machado, Marcia Denser, inclusive Marina Colasanti, autora do conto que será analisado, “O leopardo é um animal delicado”.

Esse conto de Marina Colasanti se caracteriza como erótico por retratar a sexualidade de uma mulher, de modo a apresentar ao leitor a experiência erótica através de um detalhamento dos aspectos sensoriais do corpo, que incitam a personagem e lhe despertam para a busca da satisfação de seu desejo. Dessa forma, nesse conto há a presença da descrição de um corpo erotizado, sendo que Xavier (2007) o define como um corpo que busca constantemente a satisfação do prazer.

Neste conto a personagem se caracteriza inicialmente como uma mulher que vive impasses na sua sexualidade, sendo de certa forma ainda contida, imbricada em amarras sociais, que lhe despertam vergonhas. Isso se evidencia no seguinte fragmento:
Desejou comprar um, um pênis de prata para pendurar, pendurar onde? Perguntou-se sem conseguir imaginar-se com ele pendente da fivela do relógio ou da pulseirinha do tornozelo. Guardar numa gaveta, que desperdício. Ainda assim continuava querendo-o, volto aqui depois, disse para si mesma para contornar o impasse (p. 84).
Nesse sentido, a personagem abre mão do seu desejo, de adquirir um chaveiro em formato de pênis, pois ela não via modo de se mostrar com esse objeto no meio social. Evidenciando, assim, suas vergonhas no que diz respeito aos seus desejos sexuais.

Entretanto, no decorrer da narrativa a personagem vai se mostrando mais ativa na busca pela realização do seu desejo, sendo capaz de ir em uma feira erótica e ter interesse em usufruir o que estava sendo oferecido. Sendo o ápice a sua entrada no Túnel do Amor, que lhe incitou os seus mais remotos desejos sexuais, estando destinada a satisfazê-los, mesmo que para isso fosse necessário um pouco de violência, como pode ser visto nesta passagem:
Ele puxou a sunga para cima com a mão. Ela cravou-lhe as unhas na nádega. Ele urrou ou ela. Ela afundou-lhe os dentes no pescoço. Ele agarrou-lhe os cabelos tentando afastar sua cabeça. Ela meteu-lhe o joelho com força na virilha (p. 89).
Segundo Bataille (2004) a experiência erótica está sempre envolvida por certo grau de violência, como pode ser visto neste trecho do conto, pois a protagonista utiliza da força física contra outra pessoa para conseguir a satisfação sexual.

Verifica-se que Marina Colasanti constrói uma personagem que ao mesmo tempo em que tenta se proteger dos desejos sexuais, ela também se abre para as possibilidades de satisfazê-los. Isso demonstra as vivências paradoxais das mulheres em relação aos seus desejos sexuais, visto que há uma coerção social que se dirige à repressão da sua sexualidade, em paralelo com as exigências sexuais que se apresentam de forma concreta no seu corpo.

Referências:
BAILEY, Cristina Ferreira-Pinto. O corpo e a voz da mulher brasileira na sua literatura: o discurso erótico de Márcia Denser. Disponível em: http://www.cronopios.com.br /site/ensaios.asp?id=128. Acesso em: 10 de nov 2010.

BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.

COLASANTI, Marina. O leopardo é um animal delicado. In:______. (Org.).  O leopardo é um animal delicado. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2007.