por Rubia Lanie Vaz
A finalidade deste post é apresentar a obra poética de Gilka Machado, visto que a mesma representou um marco importante para a liberação da mulher por meio de seus poemas.Ao analisar a poesia de Gilka Machado, percebe-se que esta quebra as expectativas em relação à poesia produzida por mulheres, tanto em função dos temas abordados como da qualidade dos versos, levando em conta os critérios dos críticos mais conservadores a respeito da forma. Os poemas audaciosos desafiavam os preceitos e a conduta moral de sua época, colocando pânico nos falsos moralistas do século, visto que a mesma era uma mulher avançada em relação a seu tempo. Emerge então um eu-lírico dividido pelos discursos sobre a atuação sexual das mulheres, que se desenvolvia em direções diferentes, como apresenta o poema que se segue:
A que busca em mim, que vivo em meio
de nós, e nos unindo nos separa,
não sei bem aonde vai, de onde me veio,
trago-a no sangue assim como uma tara.
Dou-te a carne que sou... mas teu anseio
fora possuí-la – a espiritual, a rara,
essa que tem o olhar ao mundo alheio,
essa que tão somente astros encara.
Porque não sou como as demais mulheres?
Sinto que, me possuindo, em mim preferes
aquela que é meu íntimo avantesma...
E, ó meu amor, que ciúme dessa estranha,
dessa rival que os dias me acompanha,
para ruína gloriosa de mim mesma!
No poema, trava-se uma luta entre duas faces de um eu-lírico no feminino: por um lado, deveria agir de acordo com o modelo de mulher assexuada enunciado pelos discursos conservadores, a qual jamais deveria admitir o desejo e por outro, a face que não é aquilo que se espera dentro desses discursos sobre o papel das mulheres de bem.
Surge, nesse poema, uma espécie de separação entre aquilo que se deveria ser e aquilo que se gostaria de ser. Baseado em um sistema de oposições binárias: corpo e alma, mulher e homem, típica da maioria das sociedades que se conhece, a expressão da sensualidade nas mulheres é vista como o oposto da decência (“Trago-a no sangue assim como uma tara”, “para a ruína gloriosa de mim mesma”).
Sob esse ponto de vista, as diferenças entre pessoas só é idealizada sob a crença em essências feminina e masculina, ou seja, entre homens e mulheres, embora o eu-lírico considere-se diferente das outras mulheres pela rebeldia, pelo fato de que não pode conter o desejo, não importando, nesse caso, qual papel o amante prefira que ela represente.
O eu-lírico recusa a passividade que se costuma exigir das mulheres em relação à atividade erótica. As imagens eróticas são recriadas por diferentes vozes femininas, fazendo emergir uma constante tensão entre a consciência literária do erotismo e a consciência erótica do literário. Nesse sentido, a temática erótica traz uma forte densidade literária, visto que ao reatualizar a verdade mítica, simultaneamente, é transmitida uma atitude autocrítica, por se tratar de uma produção poética feminina.
No entanto, é preciso ter uma consciência plena de que a mulher que reflete e expõe o erotismo livremente é a mesma que pensa e diz o seu papel, enquanto construtora da sociedade. São faces do mesmo processo. O autoconhecimento erótico leva ao conhecimento do outro e do mundo e à consciência do poder de transformá-lo com vontade própria.
Os textos escritos sob a consciência literária do erotismo são ricos em referências poéticas, e consequentemente, estes contribuem na construção da identidade com a vivência do desejo, visto que os mesmo percorrem um caminho que vai da aprendizagem para a descoberta, e concomitantemente para o saber, percorrido em contato com a Natureza.
Os poemas, de algum modo, nos sugerem que não é a satisfação compartilhada do desejo apenas ponto de chegada da experiência erótica, mas também marco de partida para o equilíbrio global e para a edificação de concretas utopias. É importante observar como poesia e pensamento estão juntos, mais uma vez, encaminhando-nos para a produção de uma existência solidária e, por isso, radicalmente humana. A qual nos leva a perceber que a Poesia não é apenas um texto construído, acabado, estruturado, mas, sobretudo força geradora de sentidos. Por esse motivo, o poema incorpora o dinamismo da criação, permitindo diferentes leituras.
Referências:
SOARES, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro: Difel, 1999.