15 novembro 2010

Língua do “P”: decodificando uma linguagem



Por Erli Porto

O conto “A língua do P”, presente no livro A via crucis do corpo, Clarice Lispector conta a história de Maria Aparecida ou Cidinha, uma professora de inglês, vaidosa e meticulosa no cuidado com suas coisas. Estava em viagem para Nova Iorque e o primeiro trecho seria feito de trem.

Seria uma viagem comum não fosse pela entrada de dois homens no vagão em que a professora estava. Os dois homens olharam para ela que, castamente, desviou o olhar. Ela sabia o que o olhar intrometido daqueles homens significava, tanto que se lembra da própria virgindade. Foucault (1988) fala de uma sexualidade “desaparecida”, condenada ao silêncio, porém, como toda condenação é parcial, ela se mostra nas entrelinhas dos acontecimentos.

Ao perceber que os homens começam a falar na língua do “P”, ou seja, um discurso secreto, supostamente só conhecido por eles, ela, que também reconhece o código, percebe neles a disposição de manter relações sexuais forçadas com ela, inclusive com a intenção de matá-la, caso fosse necessário. Ela se apavora, porém consegue imaginar que caso se fingisse de prostituta, talvez eles desistissem de estuprá-la, confirmando a tese de Foucault (1988) segundo a qual, para o sexo proscrito, existem as pessoas legitimadas para exercê-lo, com códigos bem estabelecidos de conduta, o que fica claro nas atitudes que ela passa a tomar: pinta o rosto exageradamente, levanta a saia, fuma, requebra como uma sambista, ou seja, assume um comportamento socialmente estabelecido para as prostitutas. As pessoas autorizadas ao sexo reprimido são o oposto das moças castas e virgens e, portanto, sua conduta afastaria os homens, como o fez, da intenção de possuí-la.

Acontece que o sexo, ainda segundo Foucault (1988), tem também lugares próprios de se mostrar e livre manifestar-se. Os homens então dizem que ela está “doida” solicitando ao maquinista que tome uma providência em relação à Cidinha.

O sexo livre foi apreendido por um saber médico, especialmente a partir do século XIX, com o surgimento da Psicanálise que o aprisiona num discurso de saber científico igualando-o à loucura. Qualquer conduta um pouco mais erotizada, desejante, seria sinal de histeria, eminentemente catalogada como uma psicopatologia feminina durante o século XIX. A afirmação de que “o impulso sexual da mulher é marcadamente menor [...] do que do homem” (Adler apud Gay, 1989, p. 466), ou, ainda o discurso jurídico em que o sexo aparece com um interdito legal, estão por trás da atitute tomada em relação à Cidinha: portanto, isolá-la do convívio social, com a ajuda dos policiais foi o caminho escolhido pelo maquinista solicitado a agir. Não adiantaria a ela explicar a língua do “P”: seria a língua do proibido, da puta?

Cidinha, então, é retirada do trem e ao sair se depara com uma moça que a olha com desprezo, embarcando no vagão para, literalmente, ocupar o seu lugar na poltrona e no desejo dos dois homens. Ao final do conto, somos informados de que a violência que ocorreria à Cidinha aconteceu com a moça de olhar cruel. E a informação nos chega através da língua do “P”.

Referências:
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
GAY, Peter. Freud: uma vida para o nosso tempo. Tradução de Denise Bottmanns. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

A arte erótica e o conto "Miss Algrave", de Clarice Lispector



Por Fernanda Aparecida Peixoto

Segundo Foucault (1988), a ars erotica constitui um modo de abordagem da sexualidade voltado exclusivamente para o prazer. Trata-se de partir de uma experiência prática, fundamentada em uma forma de lidar e conduzir a sexualidade, buscando atingir o objetivo maior que é saciar a sede de prazer do corpo.

Na arte erótica, a preocupação não é a transgressão do lícito e do proibido, e nem se vê um fim útil para a prática sexual. Os indivíduos que a praticam estão em busca da consumação do prazer, dos privilégios que ela fornece a quem se entrega totalmente: “domínio absoluto do corpo, gozo excepcional, esquecimento do tempo e dos limites, elixir de longa vida, exílio da morte e de suas ameaças” (Foucault, 1988, p. 57).

Segundo a tradição, a arte erótica, para sua maior eficácia e sucesso, deveria ser mantida em segredo, com a maior discrição possível, uma vez que a sua exposição diminuiria seus efeitos. A arte erótica é construída e aperfeiçoada com a prática, através de seu trabalho contínuo, da superação de suas qualidades.

Sendo assim, podemos até dizer que há a presença sutil de uma ars erotica em nossa sociedade. As práticas sexuais atuais visam cada vez mais saciar o prazer dos corpos, e demonstram que os meios para se chegar a essa saciação são ilimitados. Na individualidade, na intimidade de cada casal ou indivíduo estão presentes práticas secretas e próprias para atenderem as necessidades de prazer de cada um.

É o que se pode perceber no conto “Miss Algrave”, de Clarice Lispector. A personagem aparenta ser uma pessoa muito recatada, moralista, intolerante e exagerada até diante das pequenas demonstrações de afeto. Tomava banho uma vez por semana, de calcinha e sutiã, para não ter que ver seu corpo nu. Sentia-se e via-se intocável. Lamentava até mesmo sua origem, haja vista ser resultado de uma “incontinência” de seus pais. Contudo, bastou ter seu corpo tocado para que se esquecesse de suas opiniões. Após conhecer o prazer, entregou-se inteiramente a ele. Despiu-se sem constrangimento algum, e teve seus seios tocados, experimentando uma sensação incomparável e desejada para todo o sempre. Depois de matar a sede de prazer de seu corpo sedento, tudo mudou em sua vida, inclusive suas convicções. Sentia-se completa e realizada por ter se tornado uma mulher, uma mulher imprópria “para menores de dezoito anos” (Lispector, 1998, p.19). Tanto foi o seu deleite que acabou se tornando uma prostituta, mas uma prostituta diferente, uma quase “funcionária do prazer”. Queria mais era desfrutar dos prazeres que o seu corpo lhe oferecia.

Dessa forma, apesar de aparentar uma personalidade recatada e moralista frente a sociedade, na sua intimidade, após conhecer e deleitar-se com os prazeres do sexo, a personagem desenvolve e libera sua ars erotica, sendo inclusive vencida pela força de seu corpo, por seus prazeres carnais. Sua prática sexual volta-se única e exclusivamente para a satisfação de seu prazer, e não importa a transgressão do proibido, nem se busca uma utilidade.

Fora de uma prática utilitarista, a arte erótica, através da fantasia e imaginação, dos desejos do corpo, além da experiência adquirida, busca-se meramente o prazer,  deleitando-se com sua intensidade, sua duração, seus efeitos no corpo e na alma. O encontro dos corpos para a procriação, para o cumprimento do dever de um casal, para fazer valer as leis do casamento, está fora de objetivo na prática da arte erótica. Quando os corpos se encontram eroticamente, buscam atender e, de certa forma, liquidar os desejos mais intensos que por motivos sociais ou morais estão reprimidos nas entranhas do corpo de todo ser humano.

Referências:
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco,1998.

HOMO ERECTUS

Indicação de Erli Porto




"Melhor do que arder" e a repressão da sexualidade feminina



Por Rafaela Gonçalves Silva

A via crucis do corpo é uma obra de Clarice Lispector, publicada em 1974, na qual há uma exposição de diversos aspectos concernentes ao erotismo, sexualidade, feminilidade, desejo e prazeres. Nos contos presentes nesta obra há a retratação de diversos aspectos do erotismo feminino que provocam uma desestabilização dos mecanismos que reprimem a sexualidade, os quais atuam mais rigorosamente em relação à sexualidade feminina.

Nessa obra, verifica-se que Clarice aponta os diversos meios de repressão que a sexualidade feminina enfrenta e as válvulas de escape desses desejos e prazeres do corpo. Dessa forma, torna-se relevante a análise do conto “Melhor do que arder”, visto que este retrata os dilemas sobre a sexualidade que a Madre Clara enfrenta ao perceber que o seu corpo possui desejos carnais, sexuais os quais são rigorosamente proibidos pela Igreja, para as pessoas que escolhem a vida religiosa. Verifica-se então que este conto pontua principalmente as formas de repressão da sexualidade na Igreja e a forma com se trata o discurso sobre o sexo nessa instituição, o que é feito principalmente durante a confissão.

Em sua obra História de sexualidade I: A vontade de saber, Foucault (1988) problematiza a idéia de repressão da sexualidade, o mutismo em relação ao sexo e o discurso da Igreja sobre este tema tão polêmico e presente no cotidiano dos sujeitos. Dessa forma, Foucault (1988) contribuirá para a compreensão dos dilemas da sexualidade vivenciados pela Madre Clara que está inserida em um contexto de mortificação da sexualidade, punição do corpo e rejeição extrema dos prazeres e desejos sexuais.

Segundo Foucault (1988), o puritanismo da Igreja impôs em relação ao sexo três decretos os quais são “interdição”, “inexistência” e “mutismo”. O discurso sobre o sexo é interditado ou, na melhor das hipóteses, ocorre em sigilo na confissão, ou seja, este tema se caracteriza com sendo algo proibido, que deve ser minuciosamente guardado.  No conto de Clarice Lispector, Madre Clara, ao falar sobre seus desejos e sensações sexuais era rigorosamente reprimida, visto que logo ao terminar de relatar sua experiência, a amiga logo lhe aconselhava a mortificar o corpo como forma de demonstrar arrependimento.

Foucault (1988) expõe que devido ao sexo constituir um assunto proibido e fadado ao mutismo, discursar sobre ele ou expor sensações prazerosas se torna um ato de transgressão e liberdade. No contexto institucional da Igreja, constitui-se uma séria transgressão o discurso sobre o sexo. Este é, por sua vez, considerado pecado, pois se trata de sensações mundanas que atrapalhariam a vocação religiosa as quais precisam ser extintas através de orações e penitências. Madre Clara, ao expor seus desejos sexuais, era aconselhada a mortificar seu corpo, dormindo no chão frio e arranhando-se.

Nas instituições em que o discurso sobre o sexo é tão proibido como nas Igrejas, escola e família, Foucault (1988) verifica que as mesmas contribuem para a perpetuação sobre o interesse e a fala em relação à sexualidade, pois essas instituições formulam as interdições e permissões, organizam dispositivos para policiar os sujeitos e fazer com que eles se policiem, como no caso da Madre Clara, que se sentia culpada pelo afloramento de sua sexualidade policiando-se assim a todo o momento ao ponto de chorar muito e comer pouco.

O policiamento sobre os sujeitos em relação as suas condutas se torna mais freqüente após a instituição da confissão que, segundo Foucault (1988), desenvolve no sujeito mecanismo de um meticuloso exame de si mesmo.  Este discurso sobre o sexo deve ser exposto na confissão, que é o ambiente permitido; assim, os desejos íntimos devem ser rigorosamente detalhados sendo que a confissão seria uma forma de ser perdoado pelos pensamentos e desejos eróticos. Após o relato sobre o esses pensamentos e sensações proibidas, o sujeito precisa sofrer punições, especialmente no corpo que é considerado a fonte do pecado. De acordo com Foucault (1988), a confissão está tão imbricada na constituição dos indivíduos que não se percebe o poder que ela envolve, pois há sempre uma instância que ouve, avalia, julga e perdoa, ou seja, há sempre um suposto possuidor do saber disposto a avaliar o sujeito que confessa.

Dessa forma verifica-se que o conto “Melhor do que arder” expõe aspectos da sexualidade feminina que estão presentes em todas as mulheres inclusive nas que seguem a vocação religiosa. Ao discutir esse tema, Clarice transpõe barreiras e tabus tradicionais religiosos extremamente arraigados na sociedade. Constata-se que o discurso sobre o sexo está envolto em diversas questões que envolvem religião, cultura, história e poder, sendo necessário analisar estes múltiplos âmbitos para compreender este complexo tema que está frequentemente presente no cotidiano dos sujeitos.

Referências:
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.