Por Fernanda Aparecida Peixoto
Segundo Foucault
(1988), a ars erotica constitui um
modo de abordagem da sexualidade voltado exclusivamente para o prazer. Trata-se de partir de uma experiência prática, fundamentada
em uma forma de lidar e conduzir a sexualidade, buscando atingir o
objetivo maior que é saciar a sede de prazer do corpo.
Na arte erótica,
a preocupação não é a transgressão do lícito e do proibido, e nem se vê um fim
útil para a prática sexual. Os indivíduos que a praticam estão em busca da
consumação do prazer, dos privilégios que ela fornece a quem se entrega
totalmente: “domínio absoluto do corpo, gozo excepcional, esquecimento do tempo
e dos limites, elixir de longa vida, exílio da morte e de suas ameaças” (Foucault, 1988, p. 57).
Segundo a
tradição, a arte erótica, para sua maior eficácia e sucesso, deveria ser
mantida em segredo, com a maior discrição possível, uma vez que a sua exposição
diminuiria seus efeitos. A arte erótica é construída e aperfeiçoada com a
prática, através de seu trabalho contínuo, da superação de suas qualidades.
Sendo assim,
podemos até dizer que há a presença sutil de uma ars erotica em nossa sociedade. As práticas sexuais atuais visam
cada vez mais saciar o prazer dos corpos, e demonstram que os meios para se
chegar a essa saciação são ilimitados. Na individualidade, na intimidade de
cada casal ou indivíduo estão presentes práticas secretas e próprias para
atenderem as necessidades de prazer de cada um.
É o que se pode
perceber no conto “Miss Algrave”, de Clarice Lispector. A personagem aparenta
ser uma pessoa muito recatada, moralista, intolerante e exagerada até diante
das pequenas demonstrações de afeto. Tomava banho uma vez por semana, de
calcinha e sutiã, para não ter que ver seu corpo nu. Sentia-se e via-se
intocável. Lamentava até mesmo sua origem, haja vista ser resultado de uma
“incontinência” de seus pais. Contudo, bastou ter seu corpo tocado para que se
esquecesse de suas opiniões. Após conhecer o prazer, entregou-se inteiramente a
ele. Despiu-se sem constrangimento algum, e teve seus seios tocados,
experimentando uma sensação incomparável e desejada para todo o sempre. Depois
de matar a sede de prazer de seu corpo sedento, tudo mudou em sua vida,
inclusive suas convicções. Sentia-se completa e realizada por ter se tornado
uma mulher, uma mulher imprópria “para menores de
dezoito anos” (Lispector, 1998,
p.19). Tanto foi o seu deleite que acabou se tornando uma prostituta,
mas uma prostituta diferente, uma quase “funcionária do prazer”. Queria mais
era desfrutar dos prazeres que o seu corpo lhe oferecia.
Dessa forma,
apesar de aparentar uma personalidade recatada e moralista frente a sociedade,
na sua intimidade, após conhecer e deleitar-se com os prazeres do sexo, a personagem
desenvolve e libera sua ars erotica,
sendo inclusive vencida pela força de seu corpo, por seus prazeres carnais. Sua
prática sexual volta-se única e exclusivamente para a satisfação de seu prazer,
e não importa a transgressão do proibido, nem se busca uma utilidade.
Fora de uma prática
utilitarista, a arte erótica, através da fantasia e imaginação, dos desejos do
corpo, além da experiência adquirida, busca-se meramente o prazer, deleitando-se com sua intensidade, sua
duração, seus efeitos no corpo e na alma. O encontro dos corpos para a
procriação, para o cumprimento do dever de um casal, para fazer valer as leis
do casamento, está fora de objetivo na prática da arte erótica. Quando os
corpos se encontram eroticamente, buscam atender e, de certa forma, liquidar os
desejos mais intensos que por motivos sociais ou morais estão reprimidos nas
entranhas do corpo de todo ser humano.
Referências:
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de
saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro:
Rocco,1998.
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