A via crucis do corpo é uma obra de Clarice Lispector, publicada em 1974, na qual
há uma exposição de diversos aspectos concernentes ao erotismo, sexualidade,
feminilidade, desejo e prazeres. Nos contos presentes nesta obra há a
retratação de diversos aspectos do erotismo feminino que provocam uma
desestabilização dos mecanismos que reprimem a sexualidade, os quais atuam mais
rigorosamente em relação à sexualidade feminina.
Nessa obra, verifica-se que
Clarice aponta os diversos meios de repressão que a sexualidade feminina
enfrenta e as válvulas de escape desses desejos e prazeres do corpo. Dessa
forma, torna-se relevante a análise do conto “Melhor do que arder”, visto que
este retrata os dilemas sobre a sexualidade que a Madre Clara enfrenta ao
perceber que o seu corpo possui desejos carnais, sexuais os quais são
rigorosamente proibidos pela Igreja, para as pessoas que escolhem a vida
religiosa. Verifica-se então que este conto pontua principalmente as formas de
repressão da sexualidade na Igreja e a forma com se trata o discurso sobre o
sexo nessa instituição, o que é feito principalmente durante a confissão.
Em sua obra História de sexualidade I: A vontade de saber, Foucault (1988)
problematiza a idéia de repressão da sexualidade, o mutismo em relação ao sexo
e o discurso da Igreja sobre este tema tão polêmico e presente no cotidiano dos
sujeitos. Dessa forma, Foucault (1988) contribuirá para a compreensão dos dilemas
da sexualidade vivenciados pela Madre Clara que está inserida em um contexto de
mortificação da sexualidade, punição do corpo e rejeição extrema dos prazeres e
desejos sexuais.
Segundo Foucault (1988), o puritanismo da Igreja impôs em relação ao sexo
três decretos os quais são “interdição”, “inexistência” e “mutismo”. O discurso
sobre o sexo é interditado ou, na melhor das hipóteses, ocorre em sigilo na
confissão, ou seja, este tema se caracteriza com sendo algo proibido, que deve
ser minuciosamente guardado. No conto de
Clarice Lispector, Madre Clara, ao falar sobre seus desejos e sensações sexuais
era rigorosamente reprimida, visto que logo ao terminar de relatar sua
experiência, a amiga logo lhe aconselhava a mortificar o corpo como forma de
demonstrar arrependimento.
Foucault (1988) expõe que devido
ao sexo constituir um assunto proibido e fadado ao mutismo, discursar sobre ele
ou expor sensações prazerosas se torna um ato de transgressão e liberdade. No
contexto institucional da Igreja, constitui-se uma séria transgressão o
discurso sobre o sexo. Este é, por sua vez, considerado pecado, pois se trata
de sensações mundanas que atrapalhariam a vocação religiosa as quais precisam
ser extintas através de orações e penitências. Madre Clara, ao expor seus
desejos sexuais, era aconselhada a mortificar seu corpo, dormindo no chão frio
e arranhando-se.
Nas instituições em que o discurso sobre o sexo é tão proibido como nas
Igrejas, escola e família, Foucault (1988) verifica que as mesmas contribuem
para a perpetuação sobre o interesse e a fala em relação à sexualidade, pois
essas instituições formulam as interdições e permissões, organizam dispositivos
para policiar os sujeitos e fazer com que eles se policiem, como no caso da
Madre Clara, que se sentia culpada pelo afloramento de sua sexualidade
policiando-se assim a todo o momento ao ponto de chorar muito e comer pouco.
O policiamento sobre os sujeitos em relação as suas condutas se torna
mais freqüente após a instituição da confissão que, segundo Foucault (1988),
desenvolve no sujeito mecanismo de um meticuloso exame de si mesmo. Este discurso sobre o sexo deve ser exposto
na confissão, que é o ambiente permitido; assim, os desejos íntimos devem ser
rigorosamente detalhados sendo que a confissão seria uma forma de ser perdoado
pelos pensamentos e desejos eróticos. Após o relato sobre o esses pensamentos e
sensações proibidas, o sujeito precisa sofrer punições, especialmente no corpo
que é considerado a fonte do pecado. De acordo com Foucault (1988), a confissão
está tão imbricada na constituição dos indivíduos que não se percebe o poder
que ela envolve, pois há sempre uma instância que ouve, avalia, julga e perdoa,
ou seja, há sempre um suposto possuidor do saber disposto a avaliar o sujeito
que confessa.
Dessa forma verifica-se que o conto “Melhor do que arder” expõe aspectos
da sexualidade feminina que estão presentes em todas as mulheres inclusive nas que
seguem a vocação religiosa. Ao discutir esse tema, Clarice transpõe barreiras e
tabus tradicionais religiosos extremamente arraigados na sociedade. Constata-se
que o discurso sobre o sexo está envolto em diversas questões que envolvem
religião, cultura, história e poder, sendo necessário analisar estes múltiplos
âmbitos para compreender este complexo tema que está frequentemente presente no
cotidiano dos sujeitos.
Referências:
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
4 comentários:
Interessante a análise de Foucault da confissão: um relato dos pensamentos proibidos a fim de que sejam possíveis as punições previstas ao sujeito. Além do mais envolve a figura do 'sujeito suposto saber" que ouve a confissão, um sujeito 'autorizado a perdoar.
Muito interessante a forma como foi exposto no texto os aspectos da sexualidade feminina, principalmente para as mulheres que seguem a vocação religiosa, onde a sexualidade é tão reprimida, escondida e castigada.
Clarice é mesmo fantástica!É impressionante como ela consegue transcrever o que se passa no íntimo de um personagem!Curioso também o fato de a proibição muitas vezes estimular a sua transgressão, afinal "o proibido é que é bom"!
Fernanda Aparecida Peixoto.
Rafaela ficou muito legal o seu texto!! Achei interessante a colocação feita em relação a repressão da sexualidade feminina, como ela é representada no conto, e também como a personagem lida com essa questão, visto que Madre Clara resolve vivenciar os desejos do seus corpo e não mais negá-los como é defendido pela instituição religiosa.
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