Por Lana Alves
Em Terra de Palavras (2008), estão reunidos contos de diversos autores
com temas como o negro, a mulher, a criança de rua, a morte, o doente, aquele
que está para morrer, o solitário e no conto “Resinas para Aurélia”, de Mayra
Santos-Febres, escritora porto-riquenha, algo de ordem sensual também aparece, do
que, em uma entrevista ela mesma fala sobre:
A sensualidade é a maneira mais
direta de se conectar com o mundo. Sem os sentidos não vemos, não cheiramos,
não tocamos, não ouvimos, nem gostamos do mundo. O resto é derivado. O
pensamento é a trilha dos sentidos e às vezes sua armadilha. Por querer escapar
da armadilha, volto à sensualidade. Talvez assim possamos repensar o mundo de
uma maneira mais íntegra. Embora, tampouco seja ingênua. Sei que o corpo é um
espelho oblíquo e que os sentidos tampouco são o lugar da pureza, nem do acesso
direto a verdade. Mas eu nunca aspirei à pureza e muito menos a verdade. Na verdade, rejeito. Não creio que sirvam
para muito, nem a do corpo, nem a da escrita, nem a da razão. A pureza e a
verdade são assépticas. E o asséptico não é bom caldo de cultivo.
O conto
inicia com uma letra de uma cantiga porto-riquenha e logo nos apresenta Lucas,
personagem principal do conto, que parava seu ofício para ver passar as “putas”
da Patagônia com suas tornozeleiras que lhes identificava o oficio. Lucas
morava com sua avó Nana e seu afeto por ela era muito grande, com ela aprendera
tudo sobre seu trabalho.
Nana pedia
a Lucas que fosse ao Conde Rojo, prostíbulo próximo, “para buscar merda de
putas jovens misturada com sangue menstrual” crendo ser um bom fertilizante.
Dessa forma, Lucas se acostumara às “putas” desde pequeno, frequentemente se
deitava com elas que o faziam entrar e se trocavam se arrumavam em sua frente,
essa conduta que paira ao “aliciamento” por parte das prostitutas, foi vista
como ameaçadora à moral da sociedade e como pode ser percebido a partir da
leitura de Do cabaré ao lar (1985) na
França, um regimento previa que as casas de tolerância (e o que ali se
praticava) deveriam ser registradas na polícia, as meretrizes possuíssem uma
carteira sanitária de identificação e passassem por exames médicos
obrigatórios; dessa forma, tenta-se dominar “o mau necessário”, colocando-o
facilmente sob controle, tudo isso pautado em um discurso médico-social de
prevenção do bem público.
É
destacado, no conto, que ninguém além das putas encarava Lucas, ninguém se dava
conta de suas feições, mas as boas senhoras, por vezes encantadas pela
habilidade de Lucas e com seus dedos firmes, imaginavam que eles lhes fossem
capazes de tirar-lhes de dentro toda secura e fazer-lhes desmanchar em rios de
âmbar suculento, coisas das quais elas se protegiam para assegurar sua
respeitabilidade.
Também em Do cabaré ao lar (1985) é delineado o
padrão de mulher que por muito tempo se estendeu e ainda lança raízes em nossa
sociedade que prega uma sexualidade um tanto livre. No livro tem-se uma
descrição de uma esposa-dona-de-casa-mãe-de-família, que não deve nem sentir
prazer, ou seja, deve manter sua castidade mesmo casada, pois o orgasmo de uma
mãe é vergonhoso, e suas obrigações como mãe são pautadas em um discurso da
natureza de ser mãe. A mulher que não segue esse padrão se insere no campo
sombrio da anormalidade do pecado e do crime, ou ainda da prostituição. A
esposa privada de seu prazer tem um cônjuge que, biologicamente possui maior
desejo sexual e dessa forma, “respeita” sua esposa, mas deve reafirmar
cotidianamente sua sexualidade, e dessa forma, procura a prostituta. A questão
do controle da expressão da sexualidade pode também ser vista em Foucalt (1988)
que se refere à dinâmica do poder como controle das sexualidades, ditando onde
e quando o sexo é permitido e insere também a necessidade da confissão como um
de seus mecanismos. Esse poder toma posse de discursos diversos, dentre os
quais o médico-biológico e o religioso, para, de acordo com a cultura e a
susceptibilidade de crença das pessoas, controlar suas expressões.
Uma
enchente inundou a cidade e a avó de Lucas morrera, Lucas tinha ido ao Conde
Rojo e lá conheceu Aurélia, com quem passou a noite e por quem se apaixonou.
Ele compara a cor da moça à substância amarela, mel, que acabara de destilar do
coração das árvores e nisso pode-se perceber uma característica que se confunde
com o fetichismo. No entanto, apesar de a todo o momento comparar a mulher e a
relação com os objetos com os quais mantém grande contato, a constituição
perversa não está aí, seu dismorfismo se coloca mais em face de uma
desorganização atual, de ordem afetiva, que possivelmente possuía uma
predisposição estrutural, visto que Lucas não possui uma vida afetiva
satisfatória, e seus relacionamentos sociais eram precários, limitando-se à sua
avó e as meretizes.
Quatro
dias depois, foi buscar a mulher amarela no que sobrou do prostíbulo. Não
encontrou. Lucas fora chamado para resgatar cadáveres que ninguém quis recolher
por medo de contaminação, os cadáveres de “putas”. Imaginava como ninguém as ia
buscar e como as jogariam no depósito, cremadas, sem uma única carícia de
despedida, aqueles corpos que o povo inteiro tinha manuseado e dos quais agora
queriam se desinteressar.
Um dia,
Lucas caminhava pelas margens do rio e de repente viu algo do outro lado da
água, tirou a camisa e se jogou no rio, depois de algum tempo percebeu ser
Aurélia. Levou-a para casa e começou a despi-la, lavou seu cabelo com sabão e
perfumou com água de rosas. Foi até a oficina e pegou a mesma solução que
houvera usado com Nana, tinha mais que o suficiente para cobrir aquele corpo de
passarinho.
Relaxou-lhes
os músculos, até que sentiu que a fricção e outras coisas lhe devolveram calor
à pele, sentia certo calor que vinha de dentro da carne da moça. Em determinado
momento, Lucas não pode mais, despiu-se colocou um pouco de resina na pélvis,
no púbis e em seu membro, com os dedos destravou a vulva de sua amada e ali
mesmo, foi penetrando na doce Aurélia de âmbar e resinas.
Gozou
dentro dela contraindo todos os músculos das costas, se esvaiu como um saco de
leite entre as pernas, lhe gritou ao ouvido que a amava, que a queria para
sempre, adormeceu sobre o cadáver e sonhou que a mulherzinha amarela o rodeava
com seus braços e lhe dava beijinhos de amor.
Ao
despertar foi ao povoado e voltou com dois grandes blocos de gelo, um facão e
potes de latão, dos que usava para recolher resina, pediu dispensa do serviço de
resgatar “putas” afogadas, ia com menos frequência aos prostíbulos e três vezes
por semana se trancava na oficina com uma lata cheia de unguentos e uma garrafa
de água de flores e não saía até de madrugada, sorridente e cheio de suores
pegajosos em toda a pele.
Bem (2005)
afirma que a experiência popular é reorganizada por discursos dentre esses o
popular e o nacional e acrescenta um terceiro que gira em torno do corpo, saúde
e sexo. Fala de uma identidade física que baseada nos dois outros discursos
organiza os discursos sobre o corpo, que estão grandemente relacionados ao
racismo e consequentemente à discriminação. É através do discurso público que
se mantém a segregação, seja por base em condutas que são ditas imorais ou até
antinaturais, seja por diferenças físicas, econômicas, religiosas. Os olhares
das pessoas se fixavam nas mãos de Lucas, assim como só focavam nas
tornozeleiras das “putas”. Essa simbolização da identificação das classes
periféricas da sociedade é muito interessante, pois tanto com Lucas quanto com
as “putas”, algo os identifica e os separa do “normal”, algo os coloca em “seus
lugares”, para que não se misturem e ameacem o padrão. E esse “algo” é
sustentado pelo discurso popular que excluirá esses corpos servis.
Nesse
conto, tem-se a representação da união de segmentos periféricos da sociedade
baseados nesses discursos da experiência popular, Lucas não era sequer
encarado, era um simples jardineiro que se prestava a serviços periféricos que
ninguém faria, aí também se detêm a colocação das prostitutas, que em seus
prostíbulos foram reconhecidas como necessárias, mas que no cotidiano, são
negadas e recriminadas. Essa união se dá com a colocação de Lucas à margem da
sociedade, não aceito por ela e assim sem relacionamentos amorosos com constituintes
aceitos dessa sociedade, relacionando-se com prostitutas, outra subclasse. Lucas
cresce tendo contato com as “putas” e as fezes delas, coisas que a sociedade
recrimina, logo, se insere nesse lugar de recriminado, e o que faz não deve ser
bem visto por ela, seu ofício e as suas demais condutas, incluindo sua
sexualidade.
Em certo
ponto, pode-se pensar em uma sexualidade perversa em Lucas, mas isso não pode
ser afirmado ao levar em conta que antes da morte de Aurélia, seu objeto de
desejo era “normal”, tendo desejo por mulheres fora da “necrofilia”. Talvez ele
agora tenha se fixado a um objeto além da morte, isso seria perversão no
sentido de desrespeito à moral instituída, visto que a necrofilia, que ele
adota, é crime, assim sendo, ele acaba de assumir uma conduta perversa de
sexualidade, mas que não é uma sexualidade perversa em sua constituição.
Referências:
BEM, Arim Soares do. A dialética do turismo sexual. São Paulo: Papirus, 2005. (Coleção Turismo).
FELISBERTO, Fernanda. Terra de palavras: contos. Rio de Janeiro: Pallas: Afirma, 2008.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.
MORGADO, Marcia. Literatura para curar el asma. Entrevista com Mayra Santos-Febres. Disponível em: http://barcelonareview.com/17/s_ent_msf.htm
RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930/ Luzia Margareth Rago. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.