04 dezembro 2008

Dois P(r)o(s)emas de Dheyne de Souza

por Dheyne de Souza

A amante

Então ela disse a ele:

(Estavam num quarto comum de hotel.)


– Eu não quero que diga nada. Eu quero que se desvencilhe do que te prende a mente e deixe o teu corpo comigo. Solte seus maxilares e deixe teus lábios descansarem um pouco do que o mundo, os singulares, os apegos lhe deixam. Não, eu não só não quero, como isso é uma grande ordem. Mas não entenda assim tão forte essa pequena e única amarra que ponho em teus olhos, desassossegue teus punhos, largue à cama os teus conceitos, isso, que te fazem humano. Quero-te líquido, límpido, quero te despir sem anseio. Não, não há relógios, não olhe, dos teus sentidos eu quero nada, um mergulho pense só nisso, nesse corpo de plumas abaixo e sobre teu peito. Desfaço esses botões não como quem te arranca vazios, antes te sopra ares quentes, sim, solte estes teus dedos, deixe-me que com eles falo só. Vejo a poesia dos teus pêlos darem ritmo às balizas do meu toque, canto, arremedos de fios percorrem agora teus calcanhares, teus joelhos, o escombro dos teus cotovelos, o nicho de teu umbigo. Descobrem-se todos cassinos no risco que minhas mãos, sim, cala sem te calar, fecha os olhos sem trancas, não fuja, deitado meu dente te invade mamilos, portas, tendões. Uma chuva inesperada e distante aproximo-me de teu hálito, deixe-o; na morada de teus vulcões entro só, permaneça, não mais, me deito larva em tua boca, corrôo agora teu ventre, tuas emoções seitas ali, derramo tamanhas guelras num rio que te me faz estiagem, inundo-te pêlos e peles, pelas frestas sulco cais, inauguro ilhas, portos, pequenas montanhas que sobrevivem as minhas águas, que peixe te fazes manso e o que te envolves é senão liquidez de tato e miragem.

Abandonou seu corpo e deixou teus olhos no teto.

(Estavam num quarto comum de hotel.)

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Pequenos fins ou Uma canção de desapego

Quero cobrir-te o rosto de adeuses, riscar nas linhas de tuas maçãs pecados nunca inclusos, roçar tão de leve tuas resistências e partir tão suave teus soluços de infância, tuas queixas dormidas em becos escuros, tuas angústias franzidas em velas de alecrim, tuas ironias frágeis, oscilantes, os vãos dos objetos caídos de teu colo, como pérolas no leite, folhas secas no outono, feito camaleão na tua pele escorregarei baixinho despedidas bem sutis. Para que não te apercebas do sono vívido e do calor solitário que a madrugada traz, o frescor inválido mas frescor, a luminosidade que às vezes a lua veste, tão sorrateira correrei tuas veias como um rio que vigia esperas, comuns lírios pregueando teus cílios, como madeixas te soprando o dorso. E não verás em meu rosto teus olhos fechados, e não terás imagens nem poesia nem noite senão uma lembrança apagada e insônia. E mesmo quando, por último, te colar os lábios derramando fins em um silêncio gordo, não ouvirás nem leve o meu sussurro mudo gritando aos urros a falta de aldravas, cairei à porta
exausta
de desapego.

Dheyne de Souza nasceu em uma madrugada, ou meio-dia, de julho, segundo dia, com certeza, de 1983. Cristalândia, Vianópolis, agora em Goiânia. Fez Letras, começou Artes Visuais. Escreve há um tempo, pinta há um pouco menos, com um pouco bem menos de regularidade que escreve. Assim mesmo, às vezes, sem. Completar. Não quer muito falar por que escreve, por que pinta e quem exatamente e quanto lê. Nada anormal. Mas fala com vacas, ah sim. E por que não? Reflexos, reflexões, refletidas. São os olhos dela. São as cercas, o cheiro de estrume, o capim e aquele extraordinário ruminar. Ruínas extremas no céu estupidamente azul benzendo o chão vil enquanto. Ela não consegue muita prosa, falar então tem sido menos. Mas tenta. Tenta muito, muitos dias, muitas horas, muito minuto. Assim um no outro em desespero, desenfreio, embaraço. Prefere o não-falar de vacas, ruminemos. Está também no Histórias Possíveis.

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