30 novembro 2008

"Ruído de Passos", de Clarice Lispector


por Gisiane Cristina Marques


O século XIX representou uma intensificação da repressão à sexualidade do casal atribuindo a esta a função única de reproduzir. O texto História da sexualidade, de Michel Foucault, trata de forma teórica sobre essa repressão e de como, ainda hoje, tratamos a sexualidade de forma contida e muda.

Segundo Foucault, falar sobre sexo e o próprio ato sexual fora do casamento era considerado um desvio às regras de uma família conjugal. O que não é regulado se torna expulso, negado e reduzido ao silêncio para aquelas pessoas que ainda não haviam recebido a bênção do casamento diante de deus. Não obstante, quanto mais se proíbe determinado assunto, mais se fala sobre ele. O não-dito é sempre valorizado como "segredo" e acaba se fazendo presente nos discursos das pessoas, porém, como tipos circunscritos e codificados.

Depois de dois longos séculos em que a história da sexualidade foi mantida sob um regime de repressão, ainda estamos muito pouco liberados para tratar desse assunto. É notável que vários tabus "estão" sendo quebrados devido ao fato das novas gerações enxergarem a sexualidade de forma mais natural, mas ainda não estamos livres de uma herança repressiva vinda de séculos passados, como podemos notar no conto "Ruídos de passos", de Clarice Lispector, que conta a história de Dona Cândida Raposo.

Essa senhora, aos oitenta e um anos “tinha a vertigem de viver” e se sentia mal principalmente quando passeava na fazenda, via as árvores, a chuva, as rosas, tudo isso fazia com que se lembrasse de seu passado quando ainda era muito bonita. Ela, com esta idade, convivia com um problema: o “desejo de prazer”. Ela queria saber quando iria passar essa vontade do prazer sexual, então, resolveu procurar um ginecologista, porém, teve uma notícia desagradável ao que queria ouvir: o médico disse que não passaria nunca, aquele desejo era até a morte. A senhora Raposo tentou encontrar uma solução para resolver seu problema, disse que poderia pagar um homem para lhe dar prazer, mas o médico pediu que se lembrasse que tinha oitenta e um anos, então teve a idéia de se arranjar sozinha, masturbando, e assim fez. Durante o orgasmo, ouviu “mudos fogos de artifício” e depois chorou. Passado esse momento, pensou ter ouvido ruído de passos, os passos de seu falecido marido Antenor Raposo.

Clarice Lispector trata de dois tabus nesse conto: velhice e sexualidade, juntas. A pessoa idosa, e em especial a mulher velha, devido à cobrança que a sociedade faz em relação ao corpo jovem e bonito da mulher, é freqüentemente vista como alguém que não mais sente prazer e não pode mais ser desejada. Tratar sobre a sexualidade na velhice causa certo desconforto ao leitor, pois esse assunto gera risos, chacotas e comentários. O exercício da sexualidade na velhice se torna algo obsceno. Há um curta-metragem desse conto com a direção de Denise Gonçalves. Ela esclarece a dificuldade que teve em encontrar uma atriz para representar o papel de Dona Cândida Raposo, devido à cena de semi-nudez que deveria aparecer no final do filme. Não é fácil fazer com que uma senhora se disponha a isso nessa idade. A sociedade é preconceituosa e privilegia somente a imagem exterior que está associada com a juventude.

No momento em que a personagem se masturba para satisfazer-se, sente muita vergonha de fazê-lo, mas liberta o corpo para o prazer, pois se lembra de seu marido em meio à solidão da viuvez e traz para o cenário, no final da história, o ruído dos passos dele.

No livro o em que o conto se insere, A via crucis do corpo, de 1974, a autora explica nas primeiras páginas, no prefácio, as circunstâncias que a levaram a escrevê-lo. Foi um livro feito por encomenda de seu editor, o poeta Álvaro Pacheco, ela afirma não ter aceitado por dinheiro e sim, porque gosta de desafios, ficou chocada com a realidade diante da indecência das histórias, mas quem mais sofreu com essa descoberta foi ela mesma. Clarice queria publicar sob forma de pseudônimo, pois temia a reação de seus filhos quando lessem assuntos tão perigosos, mas o editor não aceitou, disse que ela devia ter a liberdade de escrever. Assim, a autora tentando vencer seu próprio pudor, publicou a coletânea de contos assinando seu próprio nome.

Referências:

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2001.

GOTLIB, Nádia B. Dona Cândida Raposo: sexualidade e velhice. In: DUARTE, Constância Lima et al. (org.). Anais do IX Seminário Internacional Mulher e Literatura do GT da ANPOLL A Mulher na Literatura. UFMG, Belo Horizonte, Ago/ 2001.

LIMA, Susana Moreira. A obscenidade da velhice feminina: o rompimento do olhar na literatura. Anais do VII Seminário Internacional Fazendo Gênero. UFSC, Florianópolis, Ago/ 2006. On line. Disponível em http://www.fazendogenero7.ufsc.br/artigos/S/Susana_Moreira_de_Lima_13_A.pdf.

LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Um comentário:

Unknown disse...

Fabiana Aires da Silva Rosa...
Oi Gisiane,tudo bem, estava lendo seu artigo e gostei muito ,pois, fala sobre a sexualidade reprimida,esse conto Ruido de Passos é muito interessante,as pessoas mais velhas sempre tiveram vergonha de falar sobre sexo até para os médicos ,eles foram criados com uma educação muito rigorosa,tem pessoas que ficavam sabendo sobre sexo apenas depois do casamento,não somente as pessoas mais velhas sentem vergonha de sentir desejo,falar sobre masturbação,os jovens e até mulheres e homens quue são casados não conseguem melhorar suas vidas sexuais por vergonha,o assunto sexo foi,é e vai continuar sendo uum tabu se não fizermos algo para que esses assuntos sejam aceitos como uma coisa natural que pode ocorrer entre jovens,adultos e idosos.Bjs...