Por Lana Alves
O conto “A
língua do “P” pertence ao livro A Via
Crucis do Corpo (1974), de Clarice Lispector. Escritora nascida na Ucrânia
e que ainda pequena veio para o Brasil com os pais. Em 1943, terminou a
Faculdade de Direito e escreveu Perto do Coração Selvagem, seu primeiro
romance.
O conto “A
lingua do “P”, narra uma experiência incômoda da personagem Cidinha, que faria
uma viagem de trem de Minas para o Rio de onde embarcaria para Londres, no
entanto, no decorrer da viagem entram no trem dois homens que começam a
encará-la e a dizer algo, que ela percebeu que se tratava dela, em uma língua
um tanto estranha de início, e que mais tarde ela percebera se tratar da língua
do “P”, língua que tentava encobrir o desejo deles por Cidinha. Falavam nessa
língua para que ela não compreendesse do que se tratava, ou melhor, para que a
vontade deles prevalecesse pois eles, sendo homens, ocupam um lugar
privilegiado no âmbito da expressão da sexualidade. Fica bem caricaturizada a
forma como as figuras de poder usam do discurso sobre o sexo para seu
benefício, isso também acontece em outras esferas, como no que se diz de
repressão, que se desdobra na apropriação por parte de quem se diz habilitado a
tratar, dominar e passar sua versão sobre algo que considera danoso, que pode
desestabilizar a ordem vigente.
Em “Nós, os
vitorianos”, Foucault (1988) afirma que “os discursos sobre o sexo não se
multiplicam fora do poder, ou contra ele, porém lá onde ele se exercia e como
meio para seu exercício”. Quem fala dele dita suas regras, e foi o que
aconteceu quando Cidinha agiu como se fosse uma prostituta com o intuito de
afastar os homens, ao que eles entenderam como loucura, pois ela não mais
estava na posição da mulher erotizada que faziam dela, ela não estava no padrão
que planejaram, e como é histórico em se tratando de loucura, Cidinha é levada
á prisão.
Na prisão, não
tem palavras para explicar o que ocorrera, pois sua conduta, e o lugar de onde
fala, de receptora apenas dos desígnios de quem pode tratar do assunto, não a
gabaritam para falar sobre sua expressão, mesmo sendo uma expressão de protesto.
A “língua” que
transmitiu a mensagem que tanto a aterrorizara, não tinha explicação racional.
Essa língua também é a mesma que invade e ao mesmo tempo seduz algo “puro”,
inocente, é uma necessidade imposta, um grito a um ser que jazia surdo, essa
língua pode ser comparada, em certo nível, às exigência com as quais, em algum
ponto, nos deparamos, um “despertar” sexual. Cidinha, sem ter como se explicar,
é presa e insultada por três dias, juntamente com seu cigarro que compunha bem
uma característica comum de conduta da personagem que outrora adotara.
Quando Cidinha
começa a se revelar ao se descobrir, quando se insinua, entra no campo do que
foi descrito no domínio da sexualidade como noção de mistério, ao qual Cidinha
desafia ao se revelar, assumindo um lugar na noção de obscenidade (Paes, 1990).
Quando saiu,
foi de volta ao Rio, de cara lavada, sem a maquiagem da libertina que acabara
sendo por algum tempo. Mas se lembrava de que quando os homens falaram em
currá-la, ela desejava ser currada, aí se demonstra que ela também tem
“desejos”, algo aconteceu com os sentidos de Cidinha naquela ocasião de
“perigo”, descobrira-se uma devassa.
Já no Rio,
andando pelas ruas de Copacabana com suas novas constatações em mente, passou
por uma banca de jornal e comprou um, e lia-se que uma moça foi currada e morta
no trem, a mesma moça que a desprezou. E nisso se coloca o paradoxo, a
“perversidade” que a moça nega lhe traz a morte e quanto a Cidinha que a
aceita, vive com a impressão de que já se sabia assim; a moça, ao negar assumir
conduta semelhante a de Cidinha e antes até, de negar a aparência dela, morre,
visto que na verdade ela também devia possuir em si os mesmos elementos que
Cidinha, mas os nega, pois ainda tem arraigados os parâmetros sociais da mulher
que nunca deve ser vulgar.
Por outro
ângulo, essa moça que ficava na estação e entrava no trem para ser violentada
pode ser vista como a própria imagem de Cidinha, que despreza algo que lhe é
comum, a sexualidade, resistência essa que é violentada e morta quando tem que
representar a prostituta, que apesar de exagerado, é aí o símbolo de expressão
da sexualidade. Cidinha conclui, aos prantos, que o destino é implacável; nisso
podemos enquadrar não somente o destino da moça, mas o destino dela própria,
que perdeu ali uma parte de si, quando adotou uma postura sensual, acaba
“matando” uma parte pudica, e se descobre um tanto perversa por saber fazer
trejeitos e usar sua feminilidade para despertar a atenção do sexo oposto,
mesmo que nesse caso, não visando a sedução, e sim a repulsa por parte deles.
É notável nesse
conto a importância da perversidade dos homens diante de seu objeto erótico, as
moças “recatadas”, pois se esse objeto se mostra demais, salta a seus olhos e
lhes convida, torna-se desinteressante. Aí se impõe a imagem erótica em lugar da
pornográfica em face da perversidade, visto que, para ambos, Cidinha era uma
imagem erotizada, incitava o desejo criado pelo interdito que, para Bataille (2004),
é a essência do erotismo. Ela não traz em si elementos pornográficos, pois não
é aquilo que de imediato lhes causa excitação se mostrando, pode assim ser,
quando finge ser prostituta, a visão mais erotizada e não de nível pornográfico
e é causa de impulsos perversos nos homens.
Referencias:
BATAILLE, Georges. O Erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade
de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon
Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
LISPECTOR, Clarice. A
via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco: 1998.
Um comentário:
adorei os contos que a marilia trouxe, muito bom,no blog ja li quase tudo vou indicar a mais amigas.Façam mais postagens......
Keila
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