Por Gisele Cristiane de Assunção
[...] Todas
as histórias deste livro são contundentes e quem mais sofreu fui eu mesma.
Fiquei chocada com a realidade. Se há indecências, a culpa não é minha. [...]
Quero apenas avisar que não escrevo por dinheiro e sim por impulso (LISPECTOR,
1988, p. 11)
O livro “A via crucis do corpo”, de Clarice Lispector foi publicado em
1974. Essa publicação se diferencia das demais por ela publicadas, tendo em
vista que trata de um tema que até então tinha sido pouco explorado por essa
escritora e que representava e ainda representa um tabu para a sociedade: o
sexo.
Clarice Lispector, ao ser despedida
do jornal em que trabalhava, vê-se em um momento de grande dificuldade
financeira, tendo que viver, a partir daí, somente de seus lucros como
escritora. Com tal ofício, Clarice Lispector recebe uma proposta de um editor:
escrever um conto, o qual hoje é conhecido como A via crucis do corpo. Esse livro, já sabia Lispector antes mesmo
de escrevê-lo, foi muito censurado pela crítica literária da época, justamente
por abordar questões relativas à sexualidade. ´
É interessante observar que na obra
de Lispector, ao tratar sobre a sexualidade, ela faz uma mistura do profano com
o sagrado. A esse respeito, Silva et al. (2007, p. 6) afirmam que “o diálogo
com o tema religioso é iniciado pelo título que dialoga com o discurso bíblico
da ‘via sacra’, ‘via crucis’, caminho da cruz e a relação entre o sagrado (via
crucis) e o profano (do corpo) acontece no título A via crucis do corpo.”
O conto “Miss Algrave”, do livro A via crucis do corpo, de Clarice
Lispector, narra a história de Ruth ou Miss Algrave, como era conhecida. Miss
Algrave era uma datilógrafa cujas habilidades eram inquestionáveis, morava
sozinha e tinha uma vida tranquila, mas era uma mulher muito solitária, seu
corpo era solitário, ela era virgem... Ruth Algrave tinha uma vida de
privações, tudo era controlado e passava severamente por seus julgamentos.
Condenava as mulheres e até mesmo a estátua de Eros que aos seus olhos era uma
indecência. “Quando passava pelo Picadilly Circle e via as mulheres esperando
homens nas esquinas, só faltava vomitar. Ainda mais por dinheiro! Era demais
para se suportar. E aquela estátua de Eros, ali, indecente” (p. 13).
Miss Algrave, tinha hábitos que lhe eram peculiares. Nas refeições, optava por macarrão com molho de tomate. Tomava banho só uma vez por semana, especificamente, aos sábados e para não ter que ver seu corpo, banhava-se de calçinha e sutiã. Essa prática demonstra que Ruth era uma mulher que tinha muito pudor e esse pudor avançava até sobre o seu próprio corpo a ponto de ela lamentar a incontinência de seu pai e sua mãe. “Sentia pudor deles não terem tido pudor” (p. 16). Ela se via, portanto, como resultado de um pecado da carne. A representação da carne é muito marcante no conto, em suas refeições, por exemplo, ela não ingeria carne porque considerava essa prática um pecado, que ela não queria cometer. As suas refeições baseavam-se em frutas e legumes.
Com a solidão que a cada dia
aumentava, Ruth tinha sensações nunca antes sentidas. Certa noite Ruth foi
visitada por Ixtlan, um ser vindo de Saturno, que despertara nela os prazeres
da carne. Miss Algrave libertou seus desejos, entregou-se por completo. E que
sensação boa era aquela. Ela nunca tinha sentido nada parecido com o que sentiu naquela noite. Quando Ixtlan foi embora, Ruth
sentiu saudade, seu corpo já estava entregue àquele ser que a visitou naquela
ocasião. À espera de Ixtlan, Ruth sentia
desejos, sua carne pedia que ele voltasse. Daquela noite, ela tinha apenas o
lençol marcado pelo sangue, o sangue que representava a perda da sua
virgindade. Mas isso não era o bastante. Miss Algrave havia mudado
completamente, experimentava agora uma carne sangrenta, bebia vinho e já não
achava pecado em tudo. Tudo
era mais aceitável, mais compreendido.
Ansioso, o corpo não mais agüentava,
precisava saciar-se, precisava de um homem. Um dia convidou um homem para ir ao
seu quarto e não mais parou. Deixou a datilografia e se entregou de vez aos
prazeres da carne. A carne, o seu desejo, a dominava. Pensou que após deitar-se
com muitos homens, tomaria um banho purificador e esperaria nas noites de lua
cheia por Ixtlan que viria de Saturno para saciar seus mais íntimos desejos.
As práticas sexuais de Miss Algrave
nunca eram reveladas. Sobre isso, Foucault (1988, p. 57), diz que a prática
sexual,
constitui-se um saber que deve permanecer secreto, não em função de uma suspeita de infâmia que marque seu objeto, porém pela necessidade de mantê-lo na maior discrição, pois segundo a tradição, perderia sua eficácia e sua virtude ao ser divulgado.
Miss Algreve estava interessante tão
somente em seu prazer, havia conhecido as sensações que só o seu corpo em
contato com outro podia lhe oferecer. Tinha vontade de carne, aspirava por ela.
Estaria ela cometendo um pecado? Ela explica que não, pois era uma delícia. Inicialmente, o conto de Clarice
Lispector trata da questão do desejo reprimido e do sexo visto como pecado. A
respeito da sexualidade, vista sob a ótica da “burguesia vitoriana”, Foucault
(1988, p. 9) afirma que a família conjugal a confiscava e absorvia, inteiramente,
com a função unânime de reprodução.
Em outras circunstâncias, fora da
união conjugal e a bel-prazer o sexo configuraria um pecado. Nessa lógica, cabe
a ideia de repressão que foi acentuada com o surgimento do capitalismo e,
consequentemente, com a ordem burguesa que via na realização sexual um
“desperdício” de energia, o que contrariava o modo de produção que
caracterizava o sistema capitalista da época.
Mas ainda, em tempo de repressão das
manifestações sexuais, especialmente àquelas fora do âmbito matrimonial, havia
concessões, havia pessoas (prostitutas) que eram legitimadas a exercer o sexo,
bem como falar sobre ele. Sobre esse assunto Foucault (1988, p. 10) explica que
“se for mesmo preciso dar lugar às sexualidades ilegítimas, que vão incomodar
noutro lugar: que incomodem lá onde possam ser reinscritas, senão nos circuitos
da produção, pelo menos nos do lucro.”
Por muitos anos, era proibido às mulheres até tocar o corpo e as práticas sexuais eram encaradas apenas sob o nível de reprodução. O sexo não poderia ser fonte de prazer, de satisfação carnal para a mulher e nem tampouco poderia se falar nele. Foucault (1988, p. 10) salienta que “o que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não possui eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio.” Desde criança até a fase adulta esse deveria ser o comportamento ideal da mulher, o sexo deveria ser considerado algo pecaminoso e, em relações não legitimados, algo imoral. É interessante observar que apesar de em alguns instantes Miss Algrave negar as satisfações carnais ou qualquer outra ação que para ela se apresenta como pecado, a sua atenção estava a todo instante voltada para essas práticas, manifestada por outras pessoas ou mesmo animais.
Ao mesmo tempo em que ela repreendia
o seu desejo sexual, ela tinha uma vontade de saber e,
sobretudo, ainda que inconscientemente uma vontade de experimentar aquelas
sensações. Se por um lado o sexo se apresentava como algo reprimido, por outro,
despertava um desejo de cada vez mais avançar por esse campo, no sentido de se
valer da repressão do sexo para então falar nele.
A respeito da repressão sexual,
Foucault (1988, p. 12) salienta que
falar contra os poderes, dizer a verdade e prometer o gozo; vincular a iluminação, a liberação e a multiplicação de volúpias; empregar um discurso onde confluem o ardor do saber, - a vontade de mudar a lei e o esperado jardim das delícias – eis o que, sem dúvida, sustenta em nós a abstinação em falar do sexo em termos de repressão.
Na verdade, a questão da repressão do
sexo sempre funcionou como um estímulo para se falar nesse assunto, uma vez que
posto como “proibido” acaba justificando a contínua colocação do sexo em
discurso. Dessa maneira, tem-se essa ilusão de que é proibido vagar, em algumas
circunstâncias, como quer que seja, no campo da sexualidade. O conto “Miss Algrave’ aqui analisado,
traz uma personagem que a princípio tem um comportamento de total repulsa ao
sexo a até mesmo a origem da vida e depois há a entrega dessa mesma personagem
aos prazeres sexuais. De fato, Algrave explorou os dois lados antagônicos que
são sugeridos pelo título desse livro: o sagrado e o profano: “E quando chegasse a lua cheia, tomaria um banho
purificador de todos os homens para estar pronta para o festim com Ixtlan”.
Referências:
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de
saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon
Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.
Lispector, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro:
Rocco: 1998.
SILVA, Alyne Cristina et al. O riso irônico em A via crucis do corpo de Clarice Lispector. Franca, 2007. On line.
Disponível em: http://www.facef.br/novo/letras/rel/edicao03/o_riso_ironico_crucis_de%20clarice.pdf. Acesso em: 30 out 10.
Disponível em: http://www.facef.br/novo/letras/rel/edicao03/o_riso_ironico_crucis_de%20clarice.pdf. Acesso em: 30 out 10.
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