Por Laisa Gonçalves Teixeira
No
livro A via crucis do corpo, de
Clarice Lispector, o tema que parece central nas narrativas dos contos é a
sexualidade, e no geral há o enfoque ao corpo feminino e tudo que seja a ele
relacionado, como desejos, fantasias, afeto, erotismo e a vontade de obter
prazer contrapondo-se com a repressão dos desejos carnais.
Nos contos, as
mulheres apresentam os desejos do corpo, algumas tentam negá-los de certa
forma, enquanto outras querem vivenciá-los intensamente, como no conto “Melhor
que arder” em que a personagem Madre Clara é obrigada a entrar no convento, mas
ela aos poucos foi se cansando de viver somente entre mulheres, ela queria sair
daquele local, encontrar um homem e se casar, não aguentava mais ter que
mortificar o seu corpo, e assim fez: arrumou suas malas e foi embora do
convento. Clara ficou a espera de um homem, que um dia encontrou, com ele se
casou e teve quatro filhos homens. Portanto, Clara não quis abrir mão daquilo
que seu corpo gritava.
A
autora toca em temas tabus, relativos à sexualidade. Mas falar sobre desejos
sexuais, sobre as vontades do corpo não é algo tão fácil, pois essas questões
não podem ser ditas sem serem passadas pelo crivo do pudor, tendo em vista
ainda que quem construiu os discursos dentro das narrativas dos contos é uma
escritora, sendo ela e suas personagens representantes do feminino e de suas
interdições. Foucault (1988) caracteriza muito bem como o discurso a respeito
da sexualidade deve ser circulado, de acordo com os códigos estabelecidos pelo
ocidente cristão: primeiramente, para falar sobre o sexo deve-se apropriar de
uma linguagem codificada, filtrar as palavras, controlar as enunciações,
definir o momento, a situação e a forma mais adequada e discreta para se falar,
caso contrário deve-se manter o silêncio absoluto. Então, por não poder falar
sobre o sexo sem nenhum pudor ou discrição, Clarice traz inicialmente o seu
conto “Explicação” para que ela justifique o que está sendo escrito. É
necessário que ela se explique para não ser julgada, sendo esta a estratégia
utilizada pela escritora para ter seu livro em circulação e evitar possíveis
escândalos.
Há,
de certa forma, no livro A via crucis do
corpo uma crítica intrínseca feita a nossa sociedade, sendo ela
caracterizada como opressora dos desejos, e diante dessa repressão sexual a
mulher parece ser quem mais experimenta seus efeitos, pois, no discurso, ela é
representada como um ser puro e que não deve ser tomada pelos impulsos do
desejo.
Isso
pode ficar mais claro se for feita a referência ao conto “Miss Algrave” em que
a personagem se vê na obrigação de rejeitar os seus desejos, ela era virgem,
não comia carne porque considerava ser um pecado, sentia-se mal ao passar por
uma rua em que havia prostitutas, nunca alguém havia tocado os seus seios,
nunca havia frequentado um pub,
tomava banho uma única vez por semana para não ter que ver seu corpo nu, e
quando fazia a higienização do corpo não tirava a sua calcinha e nem o sutiã.
Ela era uma mulher religiosa, quando via casais se acariciando procurava não
olhar, achava tudo isso horrível e o mais cômico era ela lamentar por ter
nascido da incontinência de seu pai e sua mãe, ela sentia pudor deles não terem
tido nenhum pudor. Mas a personagem, ao ter uma experiência sexual com um ser
(não fica claro se é um ser humano, ou o que seja) chamado Ixtlan percebe que
toda aquela repressão era inviável, pois o prazer que se poderia obter com o
corpo era extraordinário e se caracterizava como algo pulsante e que não
deveria ser negado.
A
escritora, nos seus contos, brinca o tempo todo ironizando o modelo padrão dos
comportamentos sexuais e das relações afetivas socialmente esperadas e em cada história narrada subverte o que seria uma
sexualidade aceitável. Clarice escreve a história de uma freira, Madre Clara,
que tem desejos sexuais, retrata uma senhora de sessenta anos, Maria Angélica
de Andrade, que tem um amante de dezenove anos. No conto “O corpo” há a
presença de uma relação de bigamia, Xavier vivia com duas mulheres, Carmem e
Beatriz. No conto “Via crucis”, Maria das Dores engravida fora do casamento,
isto fica implícito durante a leitura. Em “Ele me bebeu”, o personagem Serjoca
está interessado por outro homem, Affonso, que aos poucos foi correspondendo
aos desejos do rapaz.
No
conto “Ruído de passos” há uma idosa, Cândida Raposo, que tem o “desejo de
prazer” e que vai ao médico para saber o que pode ser feito para que a vontade
do corpo passasse, e ela dizia que na sua idade, oitenta e um anos, ninguém
mais a queria, então não sabia o que fazer, mas ela encontra como saída,
“remédio”, a prática masturbatória. Essa personagem problematiza o desejo
feminino na terceira idade, como se o corpo envelhecido não pudesse mais
desejar, gerar prazer e ser alvo de desejo do
outro. Além disso, há outra questão, o tabu da masturbação de uma mulher.
Enfim,
a autora critica de forma irônica ao longo da obra a normatização da
sexualidade e os dispositivos existentes de controle e disciplina da mesma, por
isso que ela retrata aquilo que é malvisto pela sociedade no campo da
sexualidade, ou seja, aquilo que foge à “norma”, como por exemplo, o desejo
feminino, o desejo de mulheres na terceira idade, o desejo homossexual, o
desejo bígamo, desejo de freira, entre outros.
Clarice
Lispector problematiza, no decorrer do seu livro, a repressão sexual, podendo
entender esta como consequência da concepção cristão em que a sexualidade está
atrelada ao pecado e a imoralidade.
Foucault (1988) fala como foi crescente a valorização da confissão da
carne no século XVII, na qual os sujeitos cristãos deveriam fazer um exame de
si mesmo, dos seus sentidos, das suas vontades, dos seus pensamentos, dos
sonhos, dos desejos e das ações. Associada à confissão
se tem a penitência, em que o sujeito deve infligir a seu corpo sofrimento,
pois ele é sinônimo de pecado. No conto “Melhor que arder” fica evidente essa
ideia de punir o corpo por este ser a origem de todos os pecados:
E se confessava todos os dias. Todos os dias a hóstia branca que se desmanchava na boca.Mas começou a se cansar de viver só entre mulheres. Mulheres, mulheres, mulheres. Escolheu uma amiga como confidente. Disse-lhe que não aquentava mais. A amiga aconselhou-a:- Mortifique o corpo.Passou a dormir na laje fria. E fustigava-se com silício. De nada adiantava. Pegava gripes fortes, ficava toda arranhada. Confessou-se ao padre. Ele mandou que continuasse a se mortificar. Ela continuou (LISPECTOR, 1984, p. 81).
Portanto,
o livro A via crucis do corpo apresenta
contos que podem ser considerados chocantes e intrigantes, na medida em que
colocam em foco a sexualidade humana, principalmente o desejo feminino. Sendo a
sexualidade o assunto em questão na obra, consequentemente, são problematizados
os aspectos concernentes a repressão da mesma.
Referências:
FOUCAULT, Michel. História da
sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
4 comentários:
Adorei este conto pois retrata a alma feminina, o desejo explicito em minímos detalhes... fascinante..
Eliane Costa Canedo
Este texto se faz muito interessante, na medida em que aborda a obra A VIA CRUCIS DO CORPO, de uma maneira geral,pontuando questões relevantes, a cerda da sexualidade feminina, suas contradições e os impasses entre o desejo e a repressão.
Rafaela Gonçalves Silva
O texto é de grande importancia,pois, aborda questões relevantes sobre a sexualidade feminina. A partir da observação dos contos de clarice lispector em ' A Via Crucis do Corpo' demonstrou-se como as personagens procuram afirmar seu desejo sexual em um ambiente desfavorável, regido,principalmente, por princípios religiosos que inibem a vivência plena da sexualidade. Neide
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