15 novembro 2010

"Melhor do que arder" e a repressão da sexualidade feminina



Por Rafaela Gonçalves Silva

A via crucis do corpo é uma obra de Clarice Lispector, publicada em 1974, na qual há uma exposição de diversos aspectos concernentes ao erotismo, sexualidade, feminilidade, desejo e prazeres. Nos contos presentes nesta obra há a retratação de diversos aspectos do erotismo feminino que provocam uma desestabilização dos mecanismos que reprimem a sexualidade, os quais atuam mais rigorosamente em relação à sexualidade feminina.

Nessa obra, verifica-se que Clarice aponta os diversos meios de repressão que a sexualidade feminina enfrenta e as válvulas de escape desses desejos e prazeres do corpo. Dessa forma, torna-se relevante a análise do conto “Melhor do que arder”, visto que este retrata os dilemas sobre a sexualidade que a Madre Clara enfrenta ao perceber que o seu corpo possui desejos carnais, sexuais os quais são rigorosamente proibidos pela Igreja, para as pessoas que escolhem a vida religiosa. Verifica-se então que este conto pontua principalmente as formas de repressão da sexualidade na Igreja e a forma com se trata o discurso sobre o sexo nessa instituição, o que é feito principalmente durante a confissão.

Em sua obra História de sexualidade I: A vontade de saber, Foucault (1988) problematiza a idéia de repressão da sexualidade, o mutismo em relação ao sexo e o discurso da Igreja sobre este tema tão polêmico e presente no cotidiano dos sujeitos. Dessa forma, Foucault (1988) contribuirá para a compreensão dos dilemas da sexualidade vivenciados pela Madre Clara que está inserida em um contexto de mortificação da sexualidade, punição do corpo e rejeição extrema dos prazeres e desejos sexuais.

Segundo Foucault (1988), o puritanismo da Igreja impôs em relação ao sexo três decretos os quais são “interdição”, “inexistência” e “mutismo”. O discurso sobre o sexo é interditado ou, na melhor das hipóteses, ocorre em sigilo na confissão, ou seja, este tema se caracteriza com sendo algo proibido, que deve ser minuciosamente guardado.  No conto de Clarice Lispector, Madre Clara, ao falar sobre seus desejos e sensações sexuais era rigorosamente reprimida, visto que logo ao terminar de relatar sua experiência, a amiga logo lhe aconselhava a mortificar o corpo como forma de demonstrar arrependimento.

Foucault (1988) expõe que devido ao sexo constituir um assunto proibido e fadado ao mutismo, discursar sobre ele ou expor sensações prazerosas se torna um ato de transgressão e liberdade. No contexto institucional da Igreja, constitui-se uma séria transgressão o discurso sobre o sexo. Este é, por sua vez, considerado pecado, pois se trata de sensações mundanas que atrapalhariam a vocação religiosa as quais precisam ser extintas através de orações e penitências. Madre Clara, ao expor seus desejos sexuais, era aconselhada a mortificar seu corpo, dormindo no chão frio e arranhando-se.

Nas instituições em que o discurso sobre o sexo é tão proibido como nas Igrejas, escola e família, Foucault (1988) verifica que as mesmas contribuem para a perpetuação sobre o interesse e a fala em relação à sexualidade, pois essas instituições formulam as interdições e permissões, organizam dispositivos para policiar os sujeitos e fazer com que eles se policiem, como no caso da Madre Clara, que se sentia culpada pelo afloramento de sua sexualidade policiando-se assim a todo o momento ao ponto de chorar muito e comer pouco.

O policiamento sobre os sujeitos em relação as suas condutas se torna mais freqüente após a instituição da confissão que, segundo Foucault (1988), desenvolve no sujeito mecanismo de um meticuloso exame de si mesmo.  Este discurso sobre o sexo deve ser exposto na confissão, que é o ambiente permitido; assim, os desejos íntimos devem ser rigorosamente detalhados sendo que a confissão seria uma forma de ser perdoado pelos pensamentos e desejos eróticos. Após o relato sobre o esses pensamentos e sensações proibidas, o sujeito precisa sofrer punições, especialmente no corpo que é considerado a fonte do pecado. De acordo com Foucault (1988), a confissão está tão imbricada na constituição dos indivíduos que não se percebe o poder que ela envolve, pois há sempre uma instância que ouve, avalia, julga e perdoa, ou seja, há sempre um suposto possuidor do saber disposto a avaliar o sujeito que confessa.

Dessa forma verifica-se que o conto “Melhor do que arder” expõe aspectos da sexualidade feminina que estão presentes em todas as mulheres inclusive nas que seguem a vocação religiosa. Ao discutir esse tema, Clarice transpõe barreiras e tabus tradicionais religiosos extremamente arraigados na sociedade. Constata-se que o discurso sobre o sexo está envolto em diversas questões que envolvem religião, cultura, história e poder, sendo necessário analisar estes múltiplos âmbitos para compreender este complexo tema que está frequentemente presente no cotidiano dos sujeitos.

Referências:
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

4 comentários:

Erli Porto disse...

Interessante a análise de Foucault da confissão: um relato dos pensamentos proibidos a fim de que sejam possíveis as punições previstas ao sujeito. Além do mais envolve a figura do 'sujeito suposto saber" que ouve a confissão, um sujeito 'autorizado a perdoar.

Kellen Borges disse...

Muito interessante a forma como foi exposto no texto os aspectos da sexualidade feminina, principalmente para as mulheres que seguem a vocação religiosa, onde a sexualidade é tão reprimida, escondida e castigada.

Anônimo disse...

Clarice é mesmo fantástica!É impressionante como ela consegue transcrever o que se passa no íntimo de um personagem!Curioso também o fato de a proibição muitas vezes estimular a sua transgressão, afinal "o proibido é que é bom"!

Fernanda Aparecida Peixoto.

Laisa Gonçalves Teixeira disse...

Rafaela ficou muito legal o seu texto!! Achei interessante a colocação feita em relação a repressão da sexualidade feminina, como ela é representada no conto, e também como a personagem lida com essa questão, visto que Madre Clara resolve vivenciar os desejos do seus corpo e não mais negá-los como é defendido pela instituição religiosa.