01 dezembro 2008

Travessia



por Paulo Pazz

Final de verão! Certas pequenas nuvens teimam em flutuar no horizonte que o calor tem endoidecido com seu bafo pegajoso e irritante. Nenhum vento aparecia para amenizar aquele estado de letargia do próprio mundo ante a inclemência do sol de verão. Havia em sua mão uma rosa amarela! E o moço não sabia o código das cores. Para ele uma rosa era uma rosa... o presente fugaz que deixa marcas indeléveis na alma feminina que o recebe. Sabia disto, tanto quanto sabia de amor uma criança que na verdade era. Carregava aquela rosa como quem carregava o mundo. Era um cuidado que o obrigava a manter os dedos delicadamente firmes... Por isto o suor a lhe empapar as axilas.

_ Não dará certo! _Falta coragem! _Ela não entenderá nada de nada! _Afinal, quem sou eu pra me dar o direito de ao menos tentar algo assim! Medo, Dúvidas, Rasgos na alma infante, Lanhos profundos castigavam-no por dentro e por fora. O mundo estava, ali, pronto para ridicularizá-lo ou julgá-lo como juiz irredutível e alheio às suas imensas vontades ante tão parcos recursos.

A rosa amarela e murcha sobre o banco ausente do jardim seria testemunha e cúmplice de mais um dos muitos amantes ocultos, de mais um desertor diante da primeira batalha a que o cortejar se assemelha. Fora inútil o existir daquela rosa? Teria nascido apenas para perecer desidratada sobre o banco de cimento? Inutilizada pelo covarde algoz, estava fadada a ser esquecida sem que tivesse participação efetiva no que o ser humano, na sua infinita arrogância e megalomania, impusera a ela como projeto de vida.

***

Ela acabara de sair do banho e, no entanto, a transpiração se dera até mesmo sob a ducha fria escorrendo luzidia pelo corpo, em deslizar macio e silencioso, arrepiando-a pela sensação do prazer indescritível. A água descendo pelo seu corpo foi um alívio para um dia cansativo e extremamente causticante. Daí a sua vontade de eternizar o momento, enquanto percorrera suas mãos aveludadas e amadoras por toda a extensão do corpo esguio. Os bicos dos seios despertaram! Seus dedos quase que poderiam contar cada ponto de sua pele, eriçado pelo dedilhar amedrontado e silencioso. Tivera consciência de que o pecado esterilizaria sua alma apinhada de tabus até então mantidos como palavra de ordem. Mas fora tudo tão bom que valera pelo gosto que lhe secara os lábios vermelhos e carnudos. Sua língua percorrera a fileira de dentes perfeitos que ora trincaram, ora pareceram querer devorar omundo.

Por culpa ou pudor, sei lá, não emitira um gemido sequer. Contivera a voz, engolira qualquer sussurro que certamente lhe devolveria ao mundo real e cruel. Suas pernas se abriram involuntariamente, como se recebesse o amante sempre esperado para possuir a mulher, na ampla acepção da palavra. Trêmula, dirigira o jato da ducha contra o vértice das pernas e a sensação se tornou doridamente indescritível.
_ Aaaaaahhhhhh! Explodira, enfim!

Depois dos incertos e desconexos movimentos que promovera e não pudera mais controlar, uma letargia preguiçosa a possuíra, obrigando-a a permanecer prostrada dentro da banheira. Seus pensamentos flutuaram sem destino, revolvendo sua própria história de medos e ritos. Pouco depois o secador lambia-lhe os cabelos castanhos, longos e cheirosos, abraçados à escova, supondo um contato de frescor remissível. De frente para a porta espelhada do guarda-roupas, seus gestos evoluíam naquele trabalho de tentar aperfeiçoar o que já nascera único e intraduzível em palavras que referissem ao belo. A medida de seu esforço contribuíra para que o roupão branco se rebelasse e permitisse uma abertura frontal, permissiva e pecaminosa.

Eis a imagem perfeita: a languidez daquele pequeno seio se insinuando, meio encoberto pelo tecido, apontando para o alto, capturando sonhos de luxúria. Haveria algum poeta, ou pintor, ou escultor que se aventurasse a exprimir com absoluta fidelidade a ventura daquelas formas divinas e... demoníacas? Finalmente, terminada a ocupação com os cabelos, levantou-se, deixando tudo espalhado sobre a cama. Encaminhou-se para o guarda-roupas e vasculhou os cabides com resoluta suavidade, analisando e desdenhando cada peça testada por cima do roupão.
_Ufa! Até que enfim!

Um conjuntinho palha: blusa de alcinhas e saia justa que chegava quase aos joelhos se prestariam ao prazeroso trabalho de beijar - enquanto cobrisse - aquele corpo a emprestar silhueta perfeita a tudo que o veta para o mundo. Com gestos naturalmente sensuais e falsamente descuidados deixou que o roupão deslizasse até o carpete, revelando todo o fascínio havido no corpo feminino. Era uma verdadeira poesia, o seu corpo. Aquela poesia colorida e vibrante, terna e quente, simétrica e envolvente. Seu pescoço longo e nu, recoberto por penugem dourada, era a própria ventura encarnada. A languidez do pescoço terminava em ombros igualmente perfeitos e poéticos que pareciam querer suportar -e podiam!- toda a luxuria que exala de uma mulher.

Antes que vestisse a peça de roupa escolhida, seu corpo estivera livre de qualquer agasalho, aprisionado pelo véu do olhar de seu admirador secreto que transformara a frincha da porta em umbral para o paraíso. Por todo aquele tempo não estivera sozinha como supunha! As mãos do admirador, do intruso, esgueiraram-se para o meio das próprias pernas quase sem pelos e instalou-se a guerra surda entre o frêmito voraz e a cumplicidade do pecado que lhe corrompera as entranhas.

A pele morena, os cabelos, os ombros, as costas, as coxas... tudo que via - mais o que não via, porém complementava com a imaginação - se encaixava perfeitamente bem naquele momentâneo silencioso de vigília a que se propusera voluntariamente. O instante se valera pelo imaginário e pela presença viva e pulsante do membro que atraíra e capturara, rasgando... despedaçando a lógica da razão em favor de uma realidade antes inaceitável, porém freudianamente admissível e explicável. Sua mão se traíra, buscando o aconchego macio do ventre liso. O arrepio, inevitável! A cada deslizar de dedos um novo prazer se enfeixara aos outros, avolumando a necessidade de explodir em gozo que - se mal direcionado - se lançara pela direção correta das mãos a acariciarem.

O sangue latejara-lhe nas veias, enquanto músculos, pouco a pouco, recompuseram-se ante seu olhar baço e pecador. Não tivera até então a noção exata de sua atitude. Tudo fora se avermelhando à sua volta em profusão de desejos. A carne adoçara sua saliva viscosa em lábios inocentes. A neblina libidinosa descerrara o véu da volúpia sobre seus olhos púberes que, inéditos percebedores das formas e da concepção de beleza feminina, ignoraram tudo o mais que não se referisse à sua musa e definira este tudo como veleidade a ser abandonada no lugar comum das coisas vãs e secundárias. Toda a química e a transformação natural do corpo se revelaram naquela primeira ejaculação rala e amarela a escorrer pelos pequenos dedos ainda segurando o membro mal desenvolvido e alheio a toda complexidade do momento, aninhado na palma da mãozinha trêmula.

Sonhara tanto durante o seu enlevo! Sonhara até mesmo ser um poeta.

Encantamento

Cada pensamento meu,
Mesmo que pareça vão,
Dita-me o chorar ou o sorrir
Quando você ri ou chora,
Ou quando você não ou não.
Pensar em você torna-se crucial
Pelos intermináveis instantes
Em que não a tenho comigo,
Ninando-me, desenhando-me.
E por ser tão repetitivo de gestos
Perco-me pelas minhas mãos
Querendo moldá-la em mim.
Mas eis que inútil pretensão!
Você já é completa por si,
Repleta de si e de mim
E de meus sonhos
E de tantos outros sonhos
Que não são meus!
Querer estar com você
Não é penitência.
É sublimação!
É razão aliada à loucura
De querer ser santo,
Quando sou apenas homem...
De querer ser deus
Quando sou criatura!

Eclodira o ovo de sua puberdade! A partir de então passaria a negar toda forma de inocência. Brinquedos, antes cuidados com esmero incomum, perceber-se-iam desleixados e empoeirados na sua inutilidade. Os olhos passariam a ser furtivos, angulares e maliciosos, na plenitude viril da nova e excitante etapa de vida. A vergonha e o medo do pecado repousariam à sombra envolvente do desejo recentemente descoberto. Mais detalhista, passaria a vislumbrar novas formas e cores por onde andasse. E todas elas se convergiriam para o instante primeiro do desejo suscitado, quando os estímulos dispararam o coração e enrijeceram músculos então com vida própria e extremamente dominadores.

O momento de voltar da escola seria único e aguardado com ansiedade. A escadaria, a portaria, o elevador, o quarto, a porta entreaberta, o barulho da ducha e do secador... puro erotismo e sedução com hora e lugar marcados, rotineiramente. Transformar-se-ia em rito! Mesmo depois de muitos anos, com certeza, haveria de repetir, um por um, os passos e gestos executados no quarto de fêmea que a fresta revelara. O filme se passaria religiosamente igual, sempre compassado. E o arrependimento presumível não emergiria da calda leitosa do êxtase sufocante. O instante valeria pela crua exposição e pouco se importaria se um dia tivesse de solicitar uma expurgação. Pouco lhe importaria as marcas indeléveis do pecado que ninguém haveria de aceitar ou permitir que dele se redimisse.

Um dia, quiçá, lá estaria ele, olhos e membros visitando o que poderia haver de mais íntimo. Pele e suor violando o sacrário feminino, golpeando a consciência, desmistificando leis celestiais em tépido leito terreno. Antropófago, se revolveria e se revigoraria nas vísceras do prazer que a carne da fêmea suscita. Se tudo, um dia, fosse convertido em apenas lembranças de seu primeiro de tantos pecados, seria o sinal de que atravessara aquela fase do inconsciente revoltando-se contra os ritos e mitos e misticismos que serviam somente para evocar o arrependimento que não regara. Nem consciência ou sensatez cultivaria mais!

Seu mundo absorveria o mínimo que lhe sobrasse daquele culto silencioso à mulher amada na surdina. O cheiro, o tato, o gosto e o gozo, naqueles dias remotos, mesmo sendo frutos de sua imaginação, converter-se-iam em pitadas de sal para o batizado do homem remido de uma inocência hipócrita e inútil.

Paulo Pazz, formado em Letras no ano de 2001, pela UFG, representante comercial, apaixonado pela literatura em lingua portuguesa, 44 anos, autor do livro de poemas "Palavra Lavrada".

Monella, de Tinto Brass


por Denise Fernandes


Uma ótima dica de filme: quem gosta de comédia erótica, ao estilo pornochanchada, pode se divertir com o filme “Mão nela”, ops! Monella (em inglês, Frivolous Lola). Apesar de a narrativa do filme ser uma água com açúcar, as cenas fazem rir muito, ou porque são realmente engraçadas, ou porque são extremamente ridículas. A história, adaptada de um romance homônimo, se passa em uma vila da Itália, na década de 50 e conta as travessuras de uma jovem cabeluda (meu Deus, quanto cabelo! Não existia lâmina de depilar? rsrsrsrs), virgem (aham...sei.), que estava noiva de um padeiro, o qual pensava que o casal só deveria fazer sexo depois do casamento. Mas como o fogo da garota era muito grande (até brincar de bem-me-quer, mal-me-quer com os quilômetros de pêlos pubianos era brincava!), no desenrolar da trama, ela briga com o noivo e se contamina com pensamentos eróticos envolvendo seu suposto padrasto(detalhe: Lola não sabia se o homem era seu pai ou não!).

Seria um dos objetivos da história nos fazer pensar em incesto? Ou nos fazer refletir sobre o conceito de virgindade? De moralidade? São hipóteses plausíveis. Mas o que mais se destaca nesta história é a desconstrução do estereótipo da mulher virgem. Entende-se por “estereótipo”, a imagem e/ou idéia pré-concebida para com uma pessoa, grupo social, raça, classe, coisa ou situação; ou, de acordo com Regina Célia de Souza, autora do artigo “Atitude, Preconceito e Estereótipo”,

É um conjunto de características presumidamente partilhadas por todos os membros de uma categoria social. É um esquema simplista, mas mantido de maneira muito intensa e que não se baseia necessariamente em muita experiência direta. Pode envolver praticamente qualquer aspecto distintivo de uma pessoa – idade, raça, sexo, profissão, local de residência ou grupo ao qual é associada. Quando nossa primeira impressão sobre uma pessoa é orientada por um estereótipo, tendemos a deduzir coisas sobre a pessoa de maneira seletiva ou imprecisa, perpetuando, assim, nosso estereótipo inicial.

O estereótipo de uma moça virgem é o de uma moça recatada, frágil, tímida, doce, subordinada à classe masculina, que se faz respeitar. Ser uma “virgem impura”, nas décadas de 20 e 30 preocupava os moralistas, pois a perda da virgindade antes do casamento, significava a desonra da família, a perda de um casamento rentável, etc.. O hímen era como uma porta valiosíssima, de ouro, a qual só podia ser arrombada depois do casamento. Este pequeno pedaço de pele, o hímen, era a chave para uma vida com o futuro digno de uma dona de casa. Dele dependiam as relações entre as famílias da sociedade, relações comerciais etc. Porém, atualmente, esta idéia do “hímen intacto antes de casar = futura vida de mulher digna” que, antigamente, era admitida nas relações sociais, foi se deteriorando com o passar dos anos e também devido a momentos históricos importantes, como o movimento feminista. Na Itália, no século XVII, três intelectuais se tornaram precursoras do feminismo: Lucrécia Marinelli, que produziu, em 1601, “La Nobilità e l’Eccelenza delle Donne” (A Nobreza e a Excelência da Mulher); Moderata Fonte, que produziu, em 1600, “Merito delle Donne” (Valor da Mulher) e Arcângela Tarabotti, que escreveu “Antisatira” (Anti-sátira), “Difesa delle Donne contro Horatio Plata” (Defesa da Mulher contra Horácio Plata) e “La Tirannia Paterna”.

O movimento feminista não se baseou somente na queima de sutiãs em praças públicas, mas sim na luta pela emancipação feminina, na luta pela igualdade entre os sexos, na liberdade de expressão do pensamento e do corpo da mulher, do direito de a mulher ter sua autonomia. No filme supracitado, a personagem Lola pode, em certos telespectadores, causar certo “estranhamento”, já que suas atitudes são completamente opostas às atitudes das mulheres da década de 50, visto que a mesma revela abertamente o desejo de fazer sexo, se mostra uma moça que questiona, que retruca, que expõe seus desejos carnais. Este “estranhamento” se dá pelo fato de haver resquícios do pensamento vigente dos “puristas” da época. A pessoa que o sentir irá pensar que a personagem está agindo não como uma típica mulher e ainda por cima, virgem. Irá pensar que esta está tendo atitudes de homem, devido à sua liberdade de atos e pensamentos.

A história da literatura traz imagens contraditórias como as da Nossa Senhora, da mulher idealizada, da bruxa, da jovem inocente, da sedutora, da mãe dedicada ou da femme fatale. A diversidade das imagens estereotípicas, porém, se junta numa estrutura dualista: elas dividem o feminino numa forma idealizada e demoníaca. Até há pouco tempo atrás, a maioria das mulheres recebia uma educação voltada apenas para os afazeres domésticos, não tendo acesso à cultura e às informações. Não tinham direito ao voto e não podiam trabalhar fora de casa. Além disso, era preciso que se mantivesse casta, para isso sendo vigiada durante a vida toda, primeiramente pelo pai, e, mais tarde, pelo marido, na falta deste, pelos filhos (Reisner, 1999).

Na verdade, Lola apresenta um comportamento que poderíamos chamar de amoral, a partir do momento em que ignora as convenções sexuais e o pudor, trata com naturalidade a exposição do corpo, inclusive das partes genitais e não se importa com as convenções sociais.

Ficou curioso? Quer saber se o padrasto de Monella é mesmo o pai dela? Quer saber se ela conseguirá se manter virgem até o casamento? Não vou dizer. Vou parar por aqui, afinal, esta sessão é de Dicas de Filmes e Livros... e não contarei o final da história...




Ficha Técnica:

Título Original: Monella / Frivolous Lola

Gênero: Comédia Erótica

Origem/Ano: ITÁ/1998

Duração: 99 min

Direção: Tinto Brass


Amores de Estela



por Wilton Cardoso

a coisa explodiu em mim
como conter a energia
que derrama-se e me arrasta
deixando um rastro de mim
e era eu quem me dera
continuar sendo assim
tão eu tão minha eu em mim
a coisa foi um estrondo
mas só o corpo sentiu
restou a pele que eu era
e ainda crêem que sou
por baixo dos poros de mim
as fibras derretem-se e formam
uma mesma e massiva amorfia
alada tensa intensa
toda borda transbordo-me toda
me despejo em desejo e tesão

***

me lave em lava
favo de fel e mel
me leve a mal
***

duplamente feminino
o amor entre nós duas
é o mais íntimo
e singelo de todos os amores

fêmea em todas as metades
e poros a paixão me queima
e quer e teima na tarde
do meu ser que se dissipa
em seu espelho adolescente

iara florescente em teu silente
corpo me deixo e arrasto em canto
me arremesso e me ofereço
à tua torrente turva
em que sou parca e onde me perco
incendida e quase morta
minha doce amiga das águas
de mim
ressurjo
das cinzas de mim

Wilton Cardoso apareceu em Morrinhos/GO - 1971. Compulsão crônicaguda por escrever: poemas, ensaios… Leitor obcecado. E obsessivo. Mas preguiçoso. E indisciplinado. Mora em Goiânia. Caipira, caipora, funcionário público. Vive ao léu, como todo mundo. Nos dizeres do poeta, Estela é seu vulcão, um espírito, uma pomba-gira que baixa sobre ele e que transborda desejo.




O erotismo romântico em “Solfieri”, de Álvares de Azevedo



por Fabiana Aires da Silva Rosa

História de Solfieri

Solfieri era um rapaz que foi a Roma passear e viu na rua uma linda mulher desconhecida que o fez retornar a Roma um ano depois, à sua procura. Certa noite, ao passar em frente a uma igreja entrou, viu uma mulher dentro de um caixão e, para sua surpresa, era a mesma que procurava. Pegou-a no colo, beijou-a e a despiu, pensando estar realizando um ato sexual com um cadáver. O que ele não sabia era que ela não estava morta, estava desmaiada, pois tinha catalepsia.

Ele levou a até sua casa, colocou-a em seu quarto para que seus amigos não a vissem, porém, ela morreu depois de dois dias e duas noites em que passou com uma febre devastadora. Solfieri a enterrou no chão de seu quarto, mas antes mandou fazer dela uma estátua. Como este conto é integrante do volume Noite na taverna, Solfieri estava contando sua história aos amigos, mas eles não acreditaram. Solfieri então mostrou a eles uma grinalda seca, espécie de amuleto que tinha guardado de recordação.

O erotismo romântico e a teoria de Bataille sobre o erotismo

Bataille, em seu texto O erotismo (2004), nos fala que os seres humanos fizeram da atividade sexual uma atividade erótica. O que ele pretende dizer é que as pessoas mantêm relações sexuais e amorosas umas com as outras, e a atividade sexual é um dos pontos principais para a existência, porque os seres humanos põem a sexualidade como algo íntimo de cada ser, subjetivo, e o próprio desejo é uma experiência subjetiva.

Por outro lado, no jogo erótico, o desejo pelo corpo nu já é uma pré-disposição ao ato sexual. Solfieri, além de se sentir atraído pela mulher, já a havia a idealizado. Sonhando com sua beleza, ele a vê morta e se sente excitado por ela, pois não existe somente a atração, existe um provável sentimento. Bataille nos fala também que existe uma relação entre a morte e a excitação sexual. As relações sexuais entre as pessoas nos levam a refletir que existem diversas formas de desejo, de excitações sexuais, seja pelo corpo nu ou ainda pelo cadáver, entre outras coisas, que vão da vida até a morte, como disse Bataille. A esta excitação e desejo por cadáveres (no caso do conto, uma mulher) damos o nome de necrofilia.

Bataille fala em seu texto sobre três formas do erotismo. O primeiro é o erotismo dos corpos onde o que se pensa em algo material, o corpo. No conto, Solfieri sente desejo pelo corpo morto da mulher e, com isso, expressa uma fantasia de passividade feminina muito freqüente nos textos românticos. Nesses textos, apresenta-se uma concepção de atividade masculina e passividade feminina, pois, de acordo com a visão tradicional, no ato sexual, quando os corpos se encontram, o homem tem um papel mais ativo, enquanto a mulher se apresenta no ato como uma virgem passiva, que espera o homem dar o primeiro passo. A amante morta é o exagero dessa fantasia da passividade feminina ao mesmo tempo em que expressa estreita ligação entre erotismo, vida e morte.

O segundo tipo de que nos fala Bataille é o erotismo dos corações. Aqui temos a ligação psíquica, e esta, no nível do sentimento, liga-se afetivamente ao amor platônico. No conto, Solfieri sente algo que podemos deduzir ser um provável amor platônico, pois foi capaz de nunca sentir algo por nenhuma mulher a não ser por aquela que ele havia visto em Roma, foi capaz de retornar a Roma apenas para tentar encontrá-la.

O ultimo erotismo de que Bataille nos fala é o erotismo sagrado, este se relaciona ao místico, ao sagrado, ao cosmo, e à separação. Solfieri encontra a mulher, porém, ela morre depois de dois dias e duas noites, eles são separados ficando apenas com suas lembranças. A grinalda que ele guarda como amuleto funciona como meio da união mística com a amante morta, agora transformada em um crânio seco.

O conto, como é possível ver, está dentro dos moldes românticos. O romantismo foi um movimento histórico-literário que proclamava a liberdade de criação e de expressão de sentimentos, com predomínio da sensibilidade e da imaginação, sobrepondo a paixão sobre a razão. Percebe-se que Solfieri idealiza, sonha com uma mulher que viu em Roma e ao vê-la no caixão tem a capacidade de ir contra a razão: ele a beija e se relaciona sexualmente com aquele suposto cadáver que era da mulher com que ele sonhava, e da qual nunca se esquecia. A idealização da mulher e o predomínio do sentimento contra a razão são características do romantismo. Outra característica romântica presente no conto é a ambientação: ele acontece em lugares exóticos, em ambientes noturnos, no caso, a taverna, o cemitério e a igreja durante a noite.

Portanto, o conto Solfieri, de Álvares de Azevedo, nos conta a história de Solfieri, que sente amor e também excitação pela mulher misteriosa pela qual havia se apaixonado. Este amor entre eles foi consagrado pela atração e realização do ato sexual. No erotismo, essa atração de dois corpos é uma forma de realização da fantasia do prazer. Entretanto, vê-se que no conto prevalece o erotismo romântico até mesmo na forma da linguagem, que não partilha da explicitude que se poderia esperar de um texto erótico, pois, mesmo narrando acontecimentos aterrorizantes como a necrofilia, apresenta a cena erótica de modo bastante camuflado.

LEIA O CONTO "SOLFIERI", DE ÁLVARES DE AZEVEDO

Referências:

AZEVEDO, Álvares de. Solfieri. In: COSTA, Flavio M. (Org.). As cem melhores histórias eróticas da literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.