20 novembro 2010

O Corpo



O corpo é um conto que pertence ao livro A via crucis do corpo, de Clarice Lispector, no qual se retrata um triângulo amoroso que é bastante estável. Xavier, comerciante bem sucedido, vive na mesma casa com duas mulheres, que se respeitam e aceitam a situação com bastante naturalidade. A estabilidade das relações amorosas entre Xavier, Carmem e Beatriz é rompida quando elas descobrem que existe outra mulher na vida de Xavier: uma prostituta que ele visitava periodicamente. A partir de então, Carmem e Beatriz vão se afastando – pouco a pouco – de Xavier, ao mesmo tempo em que vão se tornando mais unidas. A monotonia do cotidiano aliada à decepção sofrida pelas duas mulheres faz com que elas, depois de uma reflexão sobre a impossibilidade de transcender a morte, decidam antecipar o inevitável, e terminam por deliberar a morte de Xavier – plano executado pelas próprias mulheres. Depois de alguns dias do desaparecimento de Xavier, a polícia é chamada e descobre que ele fora enterrado no jardim de sua própria casa. Surpreendentemente, os policiais decidem que o melhor a fazer é esquecer tudo aquilo e sugerem à Carmem e Beatriz que arrumem suas malas e se mudem para o Uruguai.

Serão mostrados, nesse texto, alguns elementos característicos da obra, sendo que, neste livro, é importante tornar visível outra autora, uma Clarice que as pessoas não conhecem, escrevendo contos eróticos, com outro uso de linguagem, a forma naturalista e as ações do corpo. No conto O corpo, o erotismo é um elemento que segue a construção da sexualidade feminina e masculina, sendo que o erotismo será discutido através da ação das personagens, podemos perceber que além do sentido erótico que os corpos têm, existe outra característica que torna o conto com um aspecto grotesco que vão desde a caracterização física dos personagens e permeia até os aspectos psicológicos, atingindo os pontos mais altos na ação dos personagens, ou seja, nos excessos, a exemplo do exagero do sexo, da comida, etc.

Segundo Mikail Bakhtin (1999, p. 22) [...] as imagens grotescas conservam uma natureza original, diferenciam-se claramente das imagens da vida cotidiana, preestabelecidas e perfeitas. São imagens ambivalentes e contraditórias que parecem disformes, monstruosas e horrendas, se consideradas do ponto de vista da estética “clássica”, na qual isto vem pertencer à estética da vida cotidiana preestabelecida e completa. Como podemos observar, o grotesco está diretamente relacionado à imagem do corpo.

No conto O corpo, o erotismo pode ser encontrado não somente na narrativa, mas também na caracterização das personagens masculinas e femininas, no ambiente e na linguagem; não se trata de uma obra sobre sexo, mas de um texto que nos leva a outras discussões, partindo inicialmente das implicações do eu, para posteriormente entrar em diálogo com o outro. Outro ponto que se relaciona ao erotismo no conto O corpo, é a questão da sexualidade não como o foco principal desta obra, mas sim como todo um jogo de sedução e desejos produzidos pelas personagens. Ou seja, o erotismo não só é um processo individual, mas também através das influências sócio-culturais adquiriu características diferentes para o sexo masculino e feminino. Percebemos que o erotismo perpassa em quase todos os sentidos do corpo humano. Segundo Georges Bataille: “[...] o olfato, a audição, a visão, mesmo o gosto percebem signos objetivos, distintos da atividade que eles determinarão. São signos anunciadores da crise. Nos limites humanos, esses signos anunciadores têm um valor erótico intenso. Uma jovem nua é às vezes a imagem do erotismo” (1987, p. 122).

Pode dizer que o erotismo feminino se revela através do toque, da beleza, do olhar, do falar, enfim da sedução, que pode ser apenas uma sensação ou até mesmo a concretização do ato da conquista.


Pode-se falar em linguagem erótica porque o erotismo circunscreve-se no social, é codificado por meio de regras, combinação de elementos – os signos – que significam uma convenção e realiza-se como expressão de elementos que se combinam no corpo e representam modos de pensá-lo e de significá-lo (Camargo et al., 2002, p. 40). Sabemos que estes signos podem variar de acordo com determinadas culturas, porém o erótico, em todos os lugares do mundo, é conhecido e vivenciado de alguma forma pelos sujeitos. Como toda linguagem, a erótica também é passível de mudanças, altera-se conforme as transformações sociais. Entretanto, seu caráter universal permanece imutável ao longo da história da humanidade. O que muda são as interpretações a respeito do mesmo fenômeno (Camargo et al., 2002, p. 41).

Assim como afirma Bataille: “o erotismo só pode ser objeto de estudo se, em sua abordagem, for o homem o abordado” (1987, p. 8). Ou seja, primeiramente, o erotismo se faz de modo particular para depois se expandir para o coletivo.

Referencias:
ALBERONI. Francesco. O erotismo: fantasias e realidades do amor e da sedução. São Paulo: Círculo do Livro, 1986.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Universidade de Brasília, 1999.
BATAILLE. Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.
CAMARGO, Francisco Carlos; HOFF, Tânia Márcia Cezar. Erotismo e mídia. São Paulo: Expressão &  Arte, 2002.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

A ars erotica no conto Melhor do que arder, de Clarice Lispector



Por Kívia Alves da Silva

Para produzir a verdade do sexo, existem basicamente dois grandes procedimentos: ars erotica e scientia sexualis (Foucault, 1988). Neste texto, focaremos apenas o primeiro procedimento, tentando mostrar a ars erotica no conto de Clarice Lispector, “Melhor do que arder”.   

A ars erotica, como um dos modos de se produzir as verdades do sexo, constitui-a na extração do próprio prazer, encarado como prática e recolhido como experiência. O prazer, adotado aqui como objeto de estudo, recai sobre a própria prática sexual para trabalhá-la como se fosse de dentro e ampliar seus efeitos. Essa prática deve ser mantida de forma discreta, pois, segundo a tradição, perderia sua eficácia e sua virtude ao ser divulgada.

A ars erotica é uma forma de mostrar o sexo de uma maneira diferente do que se pensava, não como uma forma proibida e até mesmo um pecado, mas sim como um prazer, que quando praticado de forma demorada e intensa, vai se refletir no corpo e na alma.

No conto de Clarice Lispector, a protagonista Madre Clara sente o fogo e o calor do desejo, ela faz de tudo para que esse desejo vá embora, mas é vencida por ele e acaba saindo do convento para ir à procura de um homem para se casar e, enfim, matar seu desejo insaciável. Demora um pouquinho, mas ela acaba encontrando um português chamado Antonio, dono de um botequim. Eles se casam, passam a lua-de-mel em Portugal e voltam para o Brasil, ela grávida, satisfeita e alegre.

Percebemos a ars erotica no conto de Clarice a partir do momento em que a protagonista se sente realizada ao encontrar o que tanto procurava (sexo), e com essa realização ela encontra a alegria e se sente satisfeita, afirmando o que dissemos anteriormente, que a pratica do sexo se reflete no corpo e na alma.  

Na arte erótica, além de observarmos a prática do sexo como objeto de estudo, é notado algo que faz bem e que pode, como afirma Foucault (1988) ser elixir de longa vida e exílio da morte, pois a partir do momento em que nós nos sentimos felizes e satisfeitos nos distanciamos da vontade de querer morrer. Assim como Clara que deixa de ser uma madre infeliz para ser uma mulher feliz e satisfeita.      

Referências:
FOUCAULT, Michel. Historia da sexualidade I: a vontade de saber.  Rio de Janeiro: Gaal, 1988.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

[Re][Ex]pressão do comportamento feminino no conto Mais vai chover, de Clarice Lispector



O livro A via crucis do corpo é composto de contos escritos sob encomenda, que deveriam seguir a linha do erótico e que, no entanto, tratam de temas cotidianos como a velhice, a homossexualidade, a prostituição, a sexualidade e outros. São textos relatados em uma linguagem prosaica, clara e direta.

Nas páginas deste livro, o leitor é posto em contato com um mundo no qual a realidade é tratada por vezes de forma grosseira, tal como ela é. No conto Mais vai chover há a recorrência de um fato que é considerado um escândalo para a sociedade: Maria Angélica de Andrade, de 60 anos, toma por amante o jovem Alexandre, de 19 anos, este que é desrespeitado e desmoralizado no decorrer da narrativa.

Em um mundo em que a aparência jovem e bela é valorizada, pensar no prazer sexual de idosos seria um insulto aos belos, embora essa afirmação esteja carregada de preconceitos. Os velhos são aqueles vistos como pessoas aposentadas, vetados aos desejos e proibidos de tê-los ou senti-los.

Nesse conto, pode-se perceber que a velha senhora rompeu com esse preconceito e acreditou na possível relação que poderia ter com o jovem e se lançou a ela. Essa relação que se estabeleceu entre eles foi uma relação de desejo, pois Maria Angélica ao ver o “jovem forte, alto, de grande beleza” logo se permitiu a ousadia de oferecer-lhe uma xícara de café.

A partir daí a personagem é construída de emoções como tristezas, alegrias, prazer e através disto consegue amar aquela carne jovem sem temor nem pudores, embora isso causasse horror ao jovem, este que ficou impotente aos vinte e sete anos. Esse texto causa um estranhamento no leitor, pois a personagem da velha não cabe no conteúdo erótico do texto e acaba caindo no ridículo, por se tratar de um corpo velho em pleno auge do prazer do sexo, visto que comportamentos como esse não são vistos como normais em nossa sociedade.

Essa vontade de possuir e ser possuída não foi, e nem é, bem aceita quando parte do lado feminino, devido a preconceitos e repressões que a mulher sofre há muito tempo. Em um texto de Lúcia Castello Branco (2004) vê-se que é impossível falar de erotismo sem levar em consideração a “história de sua repressão”, pois em culturas como a ocidental, erotismo e repressão desenvolvem juntos suas histórias.

A autora observa que essa repressão varia de acordo com a cultura particular de cada povo. O Cristianismo, por exemplo, condena o erotismo e caracteriza a prática sexual como ato pecaminoso, enquanto que em religiões da civilização oriental, erotismo e religião caminham juntos, incluindo guias para a aprendizagem sexual, como o Kama-Sutra, este que é um manual de artes do amor em estilo hindu com diferenciadas “técnicas sexuais”. No entanto, este manual contém proibições sexuais direcionadas às mulheres, estas que devem ser boas esposas e devem ser acima de tudo, submissas.

Através da leitura do artigo O corpo e a voz da mulher brasileira na sua literatura: o discurso erótico de Márcia Denser (Bailey, 2005) observa-se que, conforme as mulheres escritoras mostram, o seu discurso contra esse tipo de tabu (repressão e erotismo feminino), vão encontrando uma linguagem própria sob as quais se expressam e, com o passar dos tempos, vão se descobrindo novas mulheres prontas para viverem e escreverem sobre o que elas gostam e querem como, por exemplo, a protagonista em discussão: “Venha para a cama comigo!”, “Maria Angélica dava gritinhos na hora do amor”. 

O livro em abordagem, apesar de ter sido polêmico na época em que foi lançado, acaba por revelar um conteúdo erótico ingênuo aos olhos contemporâneos, sob os quais o corpo é tratado como um meio/ suporte para prazer e felicidade e não mais como um escândalo ou algo parecido.

Referências:
CASTELLO BRANCO, Lúcia. O que é erotismo. São Paulo: Brasiliense, 2004. (Primeiros Passos, 136). LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 
BAILEY, Cristina Ferreira-Pinto. O corpo e a voz da mulher brasileira na sua literatura: o discurso erótico de Márcia Denser. On line. Disponível em: http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=128. Acesso em: 12 nov 2010.

O papel da confissão no conto “Melhor do que arder”



Por Flaviane Aparecida Tereza

Segundo as considerações de Michel Foucault (1988), desde a Idade Média, a confissão é considerada uma das maneiras mais importantes e eficazes para que se produza a verdade. Assim, a confissão foi ampliando seus efeitos e tomando novas formas em várias áreas como a justiça, a medicina, a pedagogia, as relações familiares e amorosas. Quanto ao ato de confessar, às vezes esse é executado por vontade própria e outras vezes se é forçado. Sobre a questão da sexualidade, pode-se dizer que vivemos em uma sociedade que sofreu muito e ainda sofre com o poder da repressão sobre o sexo, não raras vezes considerado como pecado se praticado fora dos locais legitimados (casamento, prostíbulos...).

No século XIX, essa associação do sexo ao pecado pelas normas sociais era muito forte e a pessoa que se sentisse pecadora por causa dos desejos carnais deveria então se confessar, ou a um amigo como forma de aliviar a consciência, ou ao padre para então receber o perdão de Deus. Para Foucault (1988), a Contra-Reforma se dedicou a aumentar as confissões, porque tentou impor regras para o exame de consciência de si mesmo, atribuindo cada vez mais importância à penitência como purificação do corpo em caso de pensamentos impuros e desejos sórdidos. A confissão fica sendo, então, um ritual em que se produz o discurso verdadeiro sobre o sexo. É também um ritual que estabelece uma relação de poder, pois não se confessa sem a presença de outro sujeito, o qual vai avaliar, julgar, punir ou perdoar aquele que confessa.

O conto “Melhor do que arder”, de Clarice Lispector, exemplifica bem essa questão do sexo reprimido e da confissão como alívio de culpa. Madre Clara, a protagonista do conto, morava em um convento por imposição da família, mas um dia se cansou de viver entre mulheres, confessou-se a uma amiga e começou a se mortificar, ficando até doente.

Porém, nada acabava com seus pensamentos sexuais e com os seus desejos de ser mulher. Mesmo se confessando todos os dias e fazendo penitências, o desejo carnal era mais forte, ela não podia sequer olhar mais para o Cristo nu, e assim seus dias se tornaram sofrimento e angústia. Confessou-se ao padre que, indignado, disse que era melhor casar-se então, porque, segundo a moral cristã, o casamento é um lugar legitimado para exercer os prazeres sexuais. Ela então vai embora do convento e se casa, realizando seus desejos carnais que antes eram reprimidos.

Referências:
FOUCAULT. Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
LISPECTOR, Clarice. Melhor do que arder. In:____. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998

Miss Algrave, um conto de encomenda


Por Gisele Cristiane de Assunção

[...] Todas as histórias deste livro são contundentes e quem mais sofreu fui eu mesma. Fiquei chocada com a realidade. Se há indecências, a culpa não é minha. [...] Quero apenas avisar que não escrevo por dinheiro e sim por impulso (LISPECTOR, 1988, p. 11)



O livro “A via crucis do corpo”, de Clarice Lispector foi publicado em 1974. Essa publicação se diferencia das demais por ela publicadas, tendo em vista que trata de um tema que até então tinha sido pouco explorado por essa escritora e que representava e ainda representa um tabu para a sociedade: o sexo.

Clarice Lispector, ao ser despedida do jornal em que trabalhava, vê-se em um momento de grande dificuldade financeira, tendo que viver, a partir daí, somente de seus lucros como escritora. Com tal ofício, Clarice Lispector recebe uma proposta de um editor: escrever um conto, o qual hoje é conhecido como A via crucis do corpo. Esse livro, já sabia Lispector antes mesmo de escrevê-lo, foi muito censurado pela crítica literária da época, justamente por abordar questões relativas à sexualidade. ´

É interessante observar que na obra de Lispector, ao tratar sobre a sexualidade, ela faz uma mistura do profano com o sagrado. A esse respeito, Silva et al. (2007, p. 6) afirmam que “o diálogo com o tema religioso é iniciado pelo título que dialoga com o discurso bíblico da ‘via sacra’, ‘via crucis’, caminho da cruz e a relação entre o sagrado (via crucis) e o profano (do corpo) acontece no título A via crucis do corpo.”

O conto “Miss Algrave”, do livro A via crucis do corpo, de Clarice Lispector, narra a história de Ruth ou Miss Algrave, como era conhecida. Miss Algrave era uma datilógrafa cujas habilidades eram inquestionáveis, morava sozinha e tinha uma vida tranquila, mas era uma mulher muito solitária, seu corpo era solitário, ela era virgem... Ruth Algrave tinha uma vida de privações, tudo era controlado e passava severamente por seus julgamentos. Condenava as mulheres e até mesmo a estátua de Eros que aos seus olhos era uma indecência. “Quando passava pelo Picadilly Circle e via as mulheres esperando homens nas esquinas, só faltava vomitar. Ainda mais por dinheiro! Era demais para se suportar. E aquela estátua de Eros, ali, indecente” (p. 13).


Miss Algrave, tinha hábitos que lhe eram peculiares. Nas refeições, optava por macarrão com molho de tomate. Tomava banho só uma vez por semana, especificamente, aos sábados e para não ter que ver seu corpo, banhava-se de calçinha e sutiã. Essa prática demonstra que Ruth era uma mulher que tinha muito pudor e esse pudor avançava até sobre o seu próprio corpo a ponto de ela lamentar a incontinência de seu pai e sua mãe. “Sentia pudor deles não terem tido pudor” (p. 16). Ela se via, portanto, como resultado de um pecado da carne. A representação da carne é muito marcante no conto, em suas refeições, por exemplo, ela não ingeria carne porque considerava essa prática um pecado, que ela não queria cometer.  As suas refeições baseavam-se em frutas e legumes.

Com a solidão que a cada dia aumentava, Ruth tinha sensações nunca antes sentidas. Certa noite Ruth foi visitada por Ixtlan, um ser vindo de Saturno, que despertara nela os prazeres da carne. Miss Algrave libertou seus desejos, entregou-se por completo. E que sensação boa era aquela. Ela nunca tinha sentido nada parecido com o que sentiu naquela noite. Quando Ixtlan foi embora, Ruth sentiu saudade, seu corpo já estava entregue àquele ser que a visitou naquela ocasião. À espera de Ixtlan, Ruth sentia desejos, sua carne pedia que ele voltasse. Daquela noite, ela tinha apenas o lençol marcado pelo sangue, o sangue que representava a perda da sua virgindade. Mas isso não era o bastante. Miss Algrave havia mudado completamente, experimentava agora uma carne sangrenta, bebia vinho e já não achava pecado em tudo. Tudo era mais aceitável, mais compreendido.

Ansioso, o corpo não mais agüentava, precisava saciar-se, precisava de um homem. Um dia convidou um homem para ir ao seu quarto e não mais parou. Deixou a datilografia e se entregou de vez aos prazeres da carne. A carne, o seu desejo, a dominava. Pensou que após deitar-se com muitos homens, tomaria um banho purificador e esperaria nas noites de lua cheia por Ixtlan que viria de Saturno para saciar seus mais íntimos desejos.

As práticas sexuais de Miss Algrave nunca eram reveladas. Sobre isso, Foucault (1988, p. 57), diz que a prática sexual,
constitui-se um saber que deve permanecer secreto, não em função de uma suspeita de infâmia que marque seu objeto, porém pela necessidade de mantê-lo na maior discrição, pois segundo a tradição, perderia sua eficácia e sua virtude ao ser divulgado.
Miss Algreve estava interessante tão somente em seu prazer, havia conhecido as sensações que só o seu corpo em contato com outro podia lhe oferecer. Tinha vontade de carne, aspirava por ela. Estaria ela cometendo um pecado? Ela explica que não, pois era uma delícia. Inicialmente, o conto de Clarice Lispector trata da questão do desejo reprimido e do sexo visto como pecado. A respeito da sexualidade, vista sob a ótica da “burguesia vitoriana”, Foucault (1988, p. 9) afirma que a família conjugal a confiscava e absorvia, inteiramente, com a função unânime de reprodução.

Em outras circunstâncias, fora da união conjugal e a bel-prazer o sexo configuraria um pecado. Nessa lógica, cabe a ideia de repressão que foi acentuada com o surgimento do capitalismo e, consequentemente, com a ordem burguesa que via na realização sexual um “desperdício” de energia, o que contrariava o modo de produção que caracterizava o sistema capitalista da época.

Mas ainda, em tempo de repressão das manifestações sexuais, especialmente àquelas fora do âmbito matrimonial, havia concessões, havia pessoas (prostitutas) que eram legitimadas a exercer o sexo, bem como falar sobre ele. Sobre esse assunto Foucault (1988, p. 10) explica que “se for mesmo preciso dar lugar às sexualidades ilegítimas, que vão incomodar noutro lugar: que incomodem lá onde possam ser reinscritas, senão nos circuitos da produção, pelo menos nos do lucro.”


Por muitos anos, era proibido às mulheres até tocar o corpo e as práticas sexuais eram encaradas apenas sob o nível de reprodução. O sexo não poderia ser fonte de prazer, de satisfação carnal para a mulher e nem tampouco poderia se falar nele. Foucault (1988, p. 10) salienta que “o que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não possui eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio.” Desde criança até a fase adulta esse deveria ser o comportamento ideal da mulher, o sexo deveria ser considerado algo pecaminoso e, em relações não legitimados, algo imoral. É interessante observar que apesar de em alguns instantes Miss Algrave negar as satisfações carnais ou qualquer outra ação que para ela se apresenta como pecado, a sua atenção estava a todo instante voltada para essas práticas, manifestada por outras pessoas ou mesmo animais.

Ao mesmo tempo em que ela repreendia o seu desejo sexual, ela tinha uma vontade de saber e, sobretudo, ainda que inconscientemente uma vontade de experimentar aquelas sensações. Se por um lado o sexo se apresentava como algo reprimido, por outro, despertava um desejo de cada vez mais avançar por esse campo, no sentido de se valer da repressão do sexo para então falar nele.
A respeito da repressão sexual, Foucault (1988, p. 12) salienta que
falar contra os poderes, dizer a verdade e prometer o gozo; vincular a iluminação, a liberação e a multiplicação de volúpias; empregar um discurso onde confluem o ardor do saber, - a vontade de mudar a lei e o esperado jardim das delícias – eis o que, sem dúvida, sustenta em nós a abstinação em falar do sexo em termos de repressão.
Na verdade, a questão da repressão do sexo sempre funcionou como um estímulo para se falar nesse assunto, uma vez que posto como “proibido” acaba justificando a contínua colocação do sexo em discurso. Dessa maneira, tem-se essa ilusão de que é proibido vagar, em algumas circunstâncias, como quer que seja, no campo da sexualidade. O conto “Miss Algrave’ aqui analisado, traz uma personagem que a princípio tem um comportamento de total repulsa ao sexo a até mesmo a origem da vida e depois há a entrega dessa mesma personagem aos prazeres sexuais. De fato, Algrave explorou os dois lados antagônicos que são sugeridos pelo título desse livro: o sagrado e o profano: “E quando chegasse a lua cheia, tomaria um banho purificador de todos os homens para estar pronta para o festim com Ixtlan”.

Referências:
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.
Lispector, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco: 1998.
SILVA, Alyne Cristina et al.  O riso irônico em A via crucis do corpo de Clarice Lispector. Franca, 2007. On line. 
Disponível em: http://www.facef.br/novo/letras/rel/edicao03/o_riso_ironico_crucis_de%20clarice.pdfAcesso em: 30 out 10.