17 novembro 2010

A representação da sexualidade em A via crucis do corpo

Por Laisa Gonçalves Teixeira

No livro A via crucis do corpo, de Clarice Lispector, o tema que parece central nas narrativas dos contos é a sexualidade, e no geral há o enfoque ao corpo feminino e tudo que seja a ele relacionado, como desejos, fantasias, afeto, erotismo e a vontade de obter prazer contrapondo-se com a repressão dos desejos carnais. 

Nos contos, as mulheres apresentam os desejos do corpo, algumas tentam negá-los de certa forma, enquanto outras querem vivenciá-los intensamente, como no conto “Melhor que arder” em que a personagem Madre Clara é obrigada a entrar no convento, mas ela aos poucos foi se cansando de viver somente entre mulheres, ela queria sair daquele local, encontrar um homem e se casar, não aguentava mais ter que mortificar o seu corpo, e assim fez: arrumou suas malas e foi embora do convento. Clara ficou a espera de um homem, que um dia encontrou, com ele se casou e teve quatro filhos homens. Portanto, Clara não quis abrir mão daquilo que seu corpo gritava.

A autora toca em temas tabus, relativos à sexualidade. Mas falar sobre desejos sexuais, sobre as vontades do corpo não é algo tão fácil, pois essas questões não podem ser ditas sem serem passadas pelo crivo do pudor, tendo em vista ainda que quem construiu os discursos dentro das narrativas dos contos é uma escritora, sendo ela e suas personagens representantes do feminino e de suas interdições. Foucault (1988) caracteriza muito bem como o discurso a respeito da sexualidade deve ser circulado, de acordo com os códigos estabelecidos pelo ocidente cristão: primeiramente, para falar sobre o sexo deve-se apropriar de uma linguagem codificada, filtrar as palavras, controlar as enunciações, definir o momento, a situação e a forma mais adequada e discreta para se falar, caso contrário deve-se manter o silêncio absoluto. Então, por não poder falar sobre o sexo sem nenhum pudor ou discrição, Clarice traz inicialmente o seu conto “Explicação” para que ela justifique o que está sendo escrito. É necessário que ela se explique para não ser julgada, sendo esta a estratégia utilizada pela escritora para ter seu livro em circulação e evitar possíveis escândalos.

Há, de certa forma, no livro A via crucis do corpo uma crítica intrínseca feita a nossa sociedade, sendo ela caracterizada como opressora dos desejos, e diante dessa repressão sexual a mulher parece ser quem mais experimenta seus efeitos, pois, no discurso, ela é representada como um ser puro e que não deve ser tomada pelos impulsos do desejo.

Isso pode ficar mais claro se for feita a referência ao conto “Miss Algrave” em que a personagem se vê na obrigação de rejeitar os seus desejos, ela era virgem, não comia carne porque considerava ser um pecado, sentia-se mal ao passar por uma rua em que havia prostitutas, nunca alguém havia tocado os seus seios, nunca havia frequentado um pub, tomava banho uma única vez por semana para não ter que ver seu corpo nu, e quando fazia a higienização do corpo não tirava a sua calcinha e nem o sutiã. Ela era uma mulher religiosa, quando via casais se acariciando procurava não olhar, achava tudo isso horrível e o mais cômico era ela lamentar por ter nascido da incontinência de seu pai e sua mãe, ela sentia pudor deles não terem tido nenhum pudor. Mas a personagem, ao ter uma experiência sexual com um ser (não fica claro se é um ser humano, ou o que seja) chamado Ixtlan percebe que toda aquela repressão era inviável, pois o prazer que se poderia obter com o corpo era extraordinário e se caracterizava como algo pulsante e que não deveria ser negado.

A escritora, nos seus contos, brinca o tempo todo ironizando o modelo padrão dos comportamentos sexuais e das relações afetivas socialmente esperadas e em cada história narrada subverte o que seria uma sexualidade aceitável. Clarice escreve a história de uma freira, Madre Clara, que tem desejos sexuais, retrata uma senhora de sessenta anos, Maria Angélica de Andrade, que tem um amante de dezenove anos. No conto “O corpo” há a presença de uma relação de bigamia, Xavier vivia com duas mulheres, Carmem e Beatriz. No conto “Via crucis”, Maria das Dores engravida fora do casamento, isto fica implícito durante a leitura. Em “Ele me bebeu”, o personagem Serjoca está interessado por outro homem, Affonso, que aos poucos foi correspondendo aos desejos do rapaz.

No conto “Ruído de passos” há uma idosa, Cândida Raposo, que tem o “desejo de prazer” e que vai ao médico para saber o que pode ser feito para que a vontade do corpo passasse, e ela dizia que na sua idade, oitenta e um anos, ninguém mais a queria, então não sabia o que fazer, mas ela encontra como saída, “remédio”, a prática masturbatória. Essa personagem problematiza o desejo feminino na terceira idade, como se o corpo envelhecido não pudesse mais desejar, gerar prazer e ser alvo de desejo do outro. Além disso, há outra questão, o tabu da masturbação de uma mulher.

Enfim, a autora critica de forma irônica ao longo da obra a normatização da sexualidade e os dispositivos existentes de controle e disciplina da mesma, por isso que ela retrata aquilo que é malvisto pela sociedade no campo da sexualidade, ou seja, aquilo que foge à “norma”, como por exemplo, o desejo feminino, o desejo de mulheres na terceira idade, o desejo homossexual, o desejo bígamo, desejo de freira, entre outros.

Clarice Lispector problematiza, no decorrer do seu livro, a repressão sexual, podendo entender esta como consequência da concepção cristão em que a sexualidade está atrelada ao pecado e a imoralidade.  Foucault (1988) fala como foi crescente a valorização da confissão da carne no século XVII, na qual os sujeitos cristãos deveriam fazer um exame de si mesmo, dos seus sentidos, das suas vontades, dos seus pensamentos, dos sonhos, dos desejos e das ações. Associada à confissão se tem a penitência, em que o sujeito deve infligir a seu corpo sofrimento, pois ele é sinônimo de pecado. No conto “Melhor que arder” fica evidente essa ideia de punir o corpo por este ser a origem de todos os pecados:
E se confessava todos os dias. Todos os dias a hóstia branca que se desmanchava na boca.Mas começou a se cansar de viver só entre mulheres. Mulheres, mulheres, mulheres. Escolheu uma amiga como confidente. Disse-lhe que não aquentava mais. A amiga aconselhou-a:- Mortifique o corpo.Passou a dormir na laje fria. E fustigava-se com silício. De nada adiantava. Pegava gripes fortes, ficava toda arranhada. Confessou-se ao padre. Ele mandou que continuasse a se mortificar. Ela continuou (LISPECTOR, 1984, p. 81).
Portanto, o livro A via crucis do corpo apresenta contos que podem ser considerados chocantes e intrigantes, na medida em que colocam em foco a sexualidade humana, principalmente o desejo feminino. Sendo a sexualidade o assunto em questão na obra, consequentemente, são problematizados os aspectos concernentes a repressão da mesma.
  
Referências:
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

4 comentários:

Anônimo disse...

Adorei este conto pois retrata a alma feminina, o desejo explicito em minímos detalhes... fascinante..
Eliane Costa Canedo

Anônimo disse...

Este texto se faz muito interessante, na medida em que aborda a obra A VIA CRUCIS DO CORPO, de uma maneira geral,pontuando questões relevantes, a cerda da sexualidade feminina, suas contradições e os impasses entre o desejo e a repressão.
Rafaela Gonçalves Silva

Anônimo disse...

O texto é de grande importancia,pois, aborda questões relevantes sobre a sexualidade feminina. A partir da observação dos contos de clarice lispector em ' A Via Crucis do Corpo' demonstrou-se como as personagens procuram afirmar seu desejo sexual em um ambiente desfavorável, regido,principalmente, por princípios religiosos que inibem a vivência plena da sexualidade. Neide

Luciana Borges disse...
Este comentário foi removido pelo autor.