16 dezembro 2010

O corpo e seus desejos extravagantes



Por Fernanda Peixoto

Amparada pelo dom magnífico de inusitar o habitual, Clarice Lispector, através de seus escritos, proporciona uma literatura transcendente, misteriosa, inconstante, obrigando seu leitor a ler e reler diversas vezes um mesmo texto, dispondo-se a mergulhar nas entrelinhas, no vão das histórias que ela nebulosamente constrói.  Suas tramas retratam o cotidiano, as passagens habituais de pessoas comuns, porém o mistério está na forma como estas rotinas são descritas.

Como salienta Clenir Bellezi de Oliveira, “seus personagens, gente comum, às voltas com o dia-a-dia magro, sofrem a fissura de um imprevisto qualquer que os transtorna, crispando-os, desequilibrando-os. O que move esse desequilíbrio é a súbita revelação de algo fundamental que permanecia, até então, adormecido” (Oliveira, 2007, p. 36). O recurso do diferente, do inusitado, não está na linguagem, que por sinal se apresenta simples e conhecida, nem em fatos incomuns, mas sim no espaço abstrato de uma palavra para outra, de uma frase, de um parágrafo; naquilo que não está dito, mas sugerido; no interior mais distante e escondido, às vezes escondido de si próprio; nas entranhas  do não pensado, do não imaginado, do banido. 

Desbravadora do interior, um tema que não poderia deixar de ser um sucesso em meio às suas mais variadas produções seria o corpo humano, palco de tantos mistérios e questionamentos. No conto “O corpo”, por exemplo, sentimentos e sensações como desejo, virilidade, erotismo, arrependimento e satisfação, infração ao lícito, às poderosas regras sociais, temas estes tão abordados por Clarice, tornam a história intrigante e como de costume, inusitada.

A história gira em torno de um homem forte e rude que possui uma relação bígama com duas mulheres, além de uma terceira prostituta. O protagonista mostra-se fascinado pelos desejos mais ardentes do corpo, tornando-se um fanático por sexo. O erotismo é o cerne desta relação múltipla. Os desejos mais impulsivos controlam o dia-a-dia e as ações dos personagens. Xavier, o protagonista, se não tem seus desejos fomentados pelas duas esposas, procura a prostituta, que seria no caso a terceira; e se as duas esposas não o têm para também atenderem-nas, consolam-se entre si, excitando e fazendo amor, “amor triste”, pois não são homossexuais.

O desfecho trágico e ao mesmo tempo passional da história é resultado das inconstâncias psicológicas dos personagens, que se envolvem em traições e desejos de vingança, qualidades típicas das criaturas de Clarice, que, como destaca Clenir, “vivem em estado crítico de sensibilidade e de urgência. Sentimentos de solidão, de abandono, de culpa, de júbilo e, sobretudo, de auto-enfrentamento promovem uma ruptura com a imaginação que traziam de si e da realidade circundante, revelando a precariedade de sua condição, as carências e, muitas vezes, o que existe para além da falsa estabilidade do cotidiano”(Oliveira, 2007, p.36).

O homem de nome Xavier é morto com vários golpes de facão pelas duas mulheres que viviam com ele após ter seu caso com a prostituta descoberto. A morte do companheiro representa para as duas mulheres a realização do desejo de vingança. Como não puderam tê-lo apenas para elas, resolveram matá-lo, ficando assim elas e a amante sem ele. No entanto, segundo Bataille, “a paixão é designada por um halo de morte”. (Bataille, 2004, p. 34). Conforme sua tese, a morte permitiria a continuidade de dois seres descontínuos; seria a solução, a forma encontrada pelo amante de manter a pessoa amada em sua posse. Seríamos seres descontínuos, ou seja, indivíduos que não possuem continuidade, que se vêem limitados pelo tempo, mas que quando mergulham em uma paixão, são invadidos por um desejo insano de continuidade, de infinidade, além de um sentimento de posse, de egoísmo, e seriam justamente estes desejos que nos moveriam, que nos conduziriam aos atos mais imprevisíveis, atos como o delas, de matarem em uma noite estrelada e ao som do piano de Schubert, o grande amor.

A ironia do desfecho é o descaso do policial após descobrir o corpo. Para se livrarem do assassinado, enterram-no no jardim e plantam por cima da cova uma grande e bela roseira, que mais tarde é destruída brutalmente pelos policiais, convocados ao local pelas suspeitas do secretário de Xavier. Ao invés de prender as duas criminosas, o policial lhes sugere uma viagem a Montevidéu, para que elas não lhe dêem mais amolação, e isso, para evitar o “barulho” que um crime como aquele poderia causar.

Assim, neste conto, o corpo seria ao mesmo tempo objeto de salvação e perdição. Salvação quando instrumento de consumação de prazeres; e perdição quando causa da própria morte.
           
Referências:
BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad. Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco,1998.
OLIVEIRA, Clenir Bellezi de. Revista Discutindo Literatura. Clarice Lispector: um olhar sobre a obra de uma das divas das letras brasileiras. Ano 3, N° 14. São Paulo: Escala Educacional.

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