27 novembro 2010

A língua do P

Por Lana Alves

O conto “A língua do “P” pertence ao livro A Via Crucis do Corpo (1974), de Clarice Lispector. Escritora nascida na Ucrânia e que ainda pequena veio para o Brasil com os pais. Em 1943, terminou a Faculdade de Direito e escreveu Perto do Coração Selvagem, seu primeiro romance.

O conto “A lingua do “P”, narra uma experiência incômoda da personagem Cidinha, que faria uma viagem de trem de Minas para o Rio de onde embarcaria para Londres, no entanto, no decorrer da viagem entram no trem dois homens que começam a encará-la e a dizer algo, que ela percebeu que se tratava dela, em uma língua um tanto estranha de início, e que mais tarde ela percebera se tratar da língua do “P”, língua que tentava encobrir o desejo deles por Cidinha. Falavam nessa língua para que ela não compreendesse do que se tratava, ou melhor, para que a vontade deles prevalecesse pois eles, sendo homens, ocupam um lugar privilegiado no âmbito da expressão da sexualidade. Fica bem caricaturizada a forma como as figuras de poder usam do discurso sobre o sexo para seu benefício, isso também acontece em outras esferas, como no que se diz de repressão, que se desdobra na apropriação por parte de quem se diz habilitado a tratar, dominar e passar sua versão sobre algo que considera danoso, que pode desestabilizar a ordem vigente.

Em “Nós, os vitorianos”, Foucault (1988) afirma que “os discursos sobre o sexo não se multiplicam fora do poder, ou contra ele, porém lá onde ele se exercia e como meio para seu exercício”. Quem fala dele dita suas regras, e foi o que aconteceu quando Cidinha agiu como se fosse uma prostituta com o intuito de afastar os homens, ao que eles entenderam como loucura, pois ela não mais estava na posição da mulher erotizada que faziam dela, ela não estava no padrão que planejaram, e como é histórico em se tratando de loucura, Cidinha é levada á prisão.

Na prisão, não tem palavras para explicar o que ocorrera, pois sua conduta, e o lugar de onde fala, de receptora apenas dos desígnios de quem pode tratar do assunto, não a gabaritam para falar sobre sua expressão, mesmo sendo uma expressão de protesto.

A “língua” que transmitiu a mensagem que tanto a aterrorizara, não tinha explicação racional. Essa língua também é a mesma que invade e ao mesmo tempo seduz algo “puro”, inocente, é uma necessidade imposta, um grito a um ser que jazia surdo, essa língua pode ser comparada, em certo nível, às exigência com as quais, em algum ponto, nos deparamos, um “despertar” sexual. Cidinha, sem ter como se explicar, é presa e insultada por três dias, juntamente com seu cigarro que compunha bem uma característica comum de conduta da personagem que outrora adotara.

Quando Cidinha começa a se revelar ao se descobrir, quando se insinua, entra no campo do que foi descrito no domínio da sexualidade como noção de mistério, ao qual Cidinha desafia ao se revelar, assumindo um lugar na noção de obscenidade (Paes, 1990).

Quando saiu, foi de volta ao Rio, de cara lavada, sem a maquiagem da libertina que acabara sendo por algum tempo. Mas se lembrava de que quando os homens falaram em currá-la, ela desejava ser currada, aí se demonstra que ela também tem “desejos”, algo aconteceu com os sentidos de Cidinha naquela ocasião de “perigo”, descobrira-se uma devassa.

Já no Rio, andando pelas ruas de Copacabana com suas novas constatações em mente, passou por uma banca de jornal e comprou um, e lia-se que uma moça foi currada e morta no trem, a mesma moça que a desprezou. E nisso se coloca o paradoxo, a “perversidade” que a moça nega lhe traz a morte e quanto a Cidinha que a aceita, vive com a impressão de que já se sabia assim; a moça, ao negar assumir conduta semelhante a de Cidinha e antes até, de negar a aparência dela, morre, visto que na verdade ela também devia possuir em si os mesmos elementos que Cidinha, mas os nega, pois ainda tem arraigados os parâmetros sociais da mulher que nunca deve ser vulgar.

Por outro ângulo, essa moça que ficava na estação e entrava no trem para ser violentada pode ser vista como a própria imagem de Cidinha, que despreza algo que lhe é comum, a sexualidade, resistência essa que é violentada e morta quando tem que representar a prostituta, que apesar de exagerado, é aí o símbolo de expressão da sexualidade. Cidinha conclui, aos prantos, que o destino é implacável; nisso podemos enquadrar não somente o destino da moça, mas o destino dela própria, que perdeu ali uma parte de si, quando adotou uma postura sensual, acaba “matando” uma parte pudica, e se descobre um tanto perversa por saber fazer trejeitos e usar sua feminilidade para despertar a atenção do sexo oposto, mesmo que nesse caso, não visando a sedução, e sim a repulsa por parte deles.

É notável nesse conto a importância da perversidade dos homens diante de seu objeto erótico, as moças “recatadas”, pois se esse objeto se mostra demais, salta a seus olhos e lhes convida, torna-se desinteressante. Aí se impõe a imagem erótica em lugar da pornográfica em face da perversidade, visto que, para ambos, Cidinha era uma imagem erotizada, incitava o desejo criado pelo interdito que, para Bataille (2004), é a essência do erotismo. Ela não traz em si elementos pornográficos, pois não é aquilo que de imediato lhes causa excitação se mostrando, pode assim ser, quando finge ser prostituta, a visão mais erotizada e não de nível pornográfico e é causa de impulsos perversos nos homens.

Referencias:
BATAILLE, Georges. O Erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco: 1998.

Um comentário:

Anônimo disse...

adorei os contos que a marilia trouxe, muito bom,no blog ja li quase tudo vou indicar a mais amigas.Façam mais postagens......
Keila