Por Fernanda Peixoto
Amparada pelo
dom magnífico de inusitar o habitual, Clarice Lispector, através de seus
escritos, proporciona uma literatura transcendente, misteriosa, inconstante,
obrigando seu leitor a ler e reler diversas vezes um mesmo texto, dispondo-se a
mergulhar nas entrelinhas, no vão das histórias que ela nebulosamente constrói.
Suas tramas retratam o cotidiano, as
passagens habituais de pessoas comuns, porém o mistério está na forma como
estas rotinas são descritas.
Como salienta
Clenir Bellezi de Oliveira, “seus personagens, gente comum, às voltas com o
dia-a-dia magro, sofrem a fissura de um imprevisto qualquer que os transtorna,
crispando-os, desequilibrando-os. O que move esse desequilíbrio é a súbita
revelação de algo fundamental que permanecia, até então, adormecido” (Oliveira, 2007, p. 36). O recurso do
diferente, do inusitado, não está na linguagem, que por sinal se apresenta
simples e conhecida, nem em fatos incomuns, mas sim no espaço abstrato de uma
palavra para outra, de uma frase, de um parágrafo; naquilo que não está dito,
mas sugerido; no interior mais distante e escondido, às vezes escondido de si
próprio; nas entranhas do não pensado,
do não imaginado, do banido.
Desbravadora do
interior, um tema que não poderia deixar de ser um sucesso em meio às suas mais
variadas produções seria o corpo humano, palco de tantos mistérios e
questionamentos. No conto “O corpo”, por exemplo, sentimentos e sensações como
desejo, virilidade, erotismo, arrependimento e satisfação, infração ao lícito,
às poderosas regras sociais, temas estes tão abordados por Clarice, tornam a
história intrigante e como de costume, inusitada.
A história gira
em torno de um homem forte e rude que possui uma relação bígama com duas
mulheres, além de uma terceira prostituta. O protagonista mostra-se fascinado
pelos desejos mais ardentes do corpo, tornando-se um fanático por sexo. O
erotismo é o cerne desta relação múltipla. Os desejos mais impulsivos controlam
o dia-a-dia e as ações dos personagens. Xavier, o protagonista, se não tem seus
desejos fomentados pelas duas esposas, procura a prostituta, que seria no caso
a terceira; e se as duas esposas não o têm para também atenderem-nas, consolam-se
entre si, excitando e fazendo amor, “amor triste”, pois não são homossexuais.
O desfecho
trágico e ao mesmo tempo passional da história é resultado das inconstâncias
psicológicas dos personagens, que se envolvem em traições e desejos de vingança,
qualidades típicas das criaturas de Clarice, que, como destaca Clenir, “vivem
em estado crítico de sensibilidade e de urgência. Sentimentos de solidão, de
abandono, de culpa, de júbilo e, sobretudo, de auto-enfrentamento promovem uma
ruptura com a imaginação que traziam de si e da realidade circundante,
revelando a precariedade de sua condição, as carências e, muitas vezes, o que
existe para além da falsa estabilidade do cotidiano”(Oliveira, 2007, p.36).
O homem de nome
Xavier é morto com vários golpes de facão pelas duas mulheres que viviam com
ele após ter seu caso com a prostituta descoberto. A morte do companheiro representa
para as duas mulheres a realização do desejo de vingança. Como não puderam tê-lo
apenas para elas, resolveram matá-lo, ficando assim elas e a amante sem ele. No
entanto, segundo Bataille, “a paixão é designada por um halo de morte”. (Bataille, 2004, p. 34). Conforme sua
tese, a morte permitiria a continuidade de dois seres descontínuos; seria a
solução, a forma encontrada pelo amante de manter a pessoa amada em sua posse.
Seríamos seres descontínuos, ou seja, indivíduos que não possuem continuidade,
que se vêem limitados pelo tempo, mas que quando mergulham em uma paixão, são
invadidos por um desejo insano de continuidade, de infinidade, além de um
sentimento de posse, de egoísmo, e seriam justamente estes desejos que nos moveriam,
que nos conduziriam aos atos mais imprevisíveis, atos como o delas, de matarem
em uma noite estrelada e ao som do piano de Schubert, o grande amor.
A ironia do
desfecho é o descaso do policial após descobrir o corpo. Para se livrarem do
assassinado, enterram-no no jardim e plantam por cima da cova uma grande e bela
roseira, que mais tarde é destruída brutalmente pelos policiais, convocados ao
local pelas suspeitas do secretário de Xavier. Ao invés de prender as duas
criminosas, o policial lhes sugere uma viagem a Montevidéu, para que elas não
lhe dêem mais amolação, e isso, para evitar o “barulho” que um crime como
aquele poderia causar.
Assim, neste
conto, o corpo seria ao mesmo tempo objeto de salvação e perdição. Salvação
quando instrumento de consumação de prazeres; e perdição quando causa da
própria morte.
Referências:
BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad. Cláudia Fares. São
Paulo: Arx, 2004.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro:
Rocco,1998.
OLIVEIRA, Clenir
Bellezi de. Revista Discutindo Literatura.
Clarice Lispector: um olhar sobre a obra de uma das divas das letras
brasileiras. Ano 3, N° 14. São Paulo: Escala Educacional.
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